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“Ninguém deve ser obrigado a fazer nada”

Essa foi a justificativa do prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, para sua ausência total da principal festa da cidade, o Carnaval. A frase sintetiza alguns dos piores defeitos num político: omissão e arrogância. Ele deixou todos em suspenso, inclusive sua equipe, e, quando a primeira escola de samba entrou na Avenida, Crivella assistia a uma partida de tênis na Gávea, Zona Sul do Rio.

Na véspera, não cumpriu o ritual simbólico de entregar as chaves da cidade ao Rei Momo. Deixou Guarda Municipal, músicos, todo mundo esperando, sem saber se o prefeito daria o ar da graça.

Não apareceu na abertura nem no fechamento da folia. Disse que a mulher “estava com uma gripe forte”. Mas ela também estava no torneio de tênis. Sylvia Crivella reza pelo credo do marido. Em livro recente de sua autoria, ela compara a homossexualidade a uma tragédia como os tsunamis e os suicídios. O prefeito ignorou o manual de boas maneiras e deu uma de Trump tupiniquim ao dizer que o Carnaval pode ser “agenda da imprensa”, mas não dele, prefeito. A Igreja Universal é contra a participação de seus fiéis no Carnaval. A prefeitura carioca está longe de ser laica. Isso é só o começo. E é perigoso.

O vice de Crivella e secretário de Transportes do Rio, Fernando MacDowell, não é obrigado a pagar impostos. Ele deve R$ 215 mil de IPTU desde 2001. Deve quase R$ 235 mil de ISS. MacDowell não é obrigado a fazer nada. Crivella também não é obrigado a substituir seu vice para dar exemplo. Não é obrigado a desistir de nomear seu filho para o mais alto cargo de confiança na prefeitura. Não é obrigado a saber que nepotismo às claras se tornou muito impopular. 

Crivella não está nem aí. E não está mesmo em lugar nenhum. Não revela sua agenda nem para seus assessores, que ficam boiando, constrangidos. No Carnaval, divulgou um vídeo dizendo que “a gente não sabe sambar, mas sabe trabalhar”. Até agora, o Rio não viu nem uma coisa nem outra. Mais fácil Crivella aprender a sambar.

“Me perguntaram por que não fui ao Sambódromo. Não fui porque no meu caso seria demagogia. E os malefícios da demagogia na vida pública são extensos. A demagogia é a máscara da democracia. E o povo do Rio rejeita um prefeito com máscara ainda que seja no Carnaval.” O povo do Rio votou em Crivella, elegeu-o prefeito. Mas seu discurso na campanha eleitoral era claro: prometia não misturar religião com política. O prefeito deve ser obrigado a cumprir sua promessa. Na verdade, Crivella nem queria estar no Rio durante o Carnaval.

Estudiosos de comunicação religiosa, como Eduardo Refkalefsky, professor da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO-UFRJ), acreditam que, ao abrir mão do papel tradicional de porta-voz e anfitrião no Carnaval do Rio, Crivella perdeu muito mais do que ganhou, num momento em que ainda precisa conquistar a boa vontade do eleitorado.

“Até quando a religião pode afetar o trabalho de um gestor? De um lado, ele deveria promover a cidade”, disse o professor. Mas, ao mesmo tempo, “ele tem a questão do conflito com o Carnaval: ou ele faria uma transição de sacerdote para a postura de gestor, que tem de representar toda a população, correndo o risco de perder eleitores, ou mantinha as atitudes de quando estava na igreja, com um discurso excludente”, afirmou Refkalefsky. Crivella preferiu a exclusão, a arrogância. Esse é um pecado capital.

Seria menos nocivo para o Brasil se somente Crivella, o pastor e bispo licenciado da Igreja Universal, agisse assim. Sua afirmação em tom de desafio remete a uma anarquia tropical que tem desmoralizado governantes, congressistas, juízes – e muitos cidadãos. Se ninguém deve ser obrigado a fazer nada que não queira, homens públicos e privados não devem assumir compromissos.

Policial não é obrigado a proteger, médico não é obrigado a atender, professor não é obrigado a ensinar, aluno não é obrigado a estudar, motorista não é obrigado a saber dirigir, pais e mães não são obrigados a educar, filhos não são obrigados a respeitar. Escolas de samba não são obrigadas a ter carros alegóricos seguros que não saiam desabando e atropelando foliões na Avenida. No fim, ninguém é punido mesmo.

A Câmara e o Senado não devem ser obrigados a descontar o dia dos congressistas que passam por lá só para bater o ponto. Os empresários não são obrigados a agir com lisura quando políticos de todos os partidos passam o chapéu pedindo dinheiro. A chapa Dilma Rousseff-Michel Temer não era obrigada a se comportar com ética e evitar o caixa dois em plena Operação Lava Jato. Somos bobos da corte, nós que nos sentimos na obrigação de protestar.Ruth de Aquino / época

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