Busque abaixo o que você precisa!

Organização do Semiárido denuncia corte no orçamento para construir cisternas rurais

 

 

O ano era 2003. O Brasil tinha um governo popular recém assumido, que se propunha a olhar mais atentamente e conter as privações dos miseráveis, entre elas a fome e a eterna falta de água que há tempos vinha castigando algumas regiões do Brasil, como o Semiárido. Nasceu então uma parceria entre a organização da sociedade civil chamada ASA (Articulação para o Semi-Árido), o governo federal e algumas empresas. Incluído pelo presidente Lula no bem sucedido Programa Fome Zero, o projeto se propôs a entregar um milhão de cisternas rurais para o povo daquele bioma.

O objetivo era resolver, assim, pelo menos parte do problema da seca no Semiárido. A água não viria das torneiras, mas estaria perto de casa. As mulheres não precisariam andar quilômetros com latas na cabeça para conseguir garantir o mínimo de água em casa. Até o relacionamento familiar, dessa forma, seria beneficiado, já que mães teriam mais tempo para cuidar dos seus filhos. Tudo isso serviu, à época, como propaganda para o programa, que passou a se chamar Um Milhão de Cisternas.  

A ideia não era nova, mas ampliava uma proposta que nascera nos anos 50 e que vinha, desde então, aqui e ali, sendo posta em prática por quem conseguia parceria ou dinheiro. Em agosto de 2004, no caderno “Razão Social”*, eu contava a história do pedreiro Manoel Apolônio de Carvalho, o Nel, baiano de Jeremoaba, inventor das cisternas, o homem que tinha dado o primeiro passo para a solução do problema de sua gente.

De fácil confecção, elas funcionam também de maneira simples: uma calha no teto da casa é ligada à cisterna, feita de cimento, e leva para esse recipiente a água da chuva. São 16 mil litros de água que podem ser usados para tudo. As cisternas criadas por Nel eram erguidas com R$ 1 mil. E a ideia surgiu, para ele, num tempo em que cismou de sair de sua terra e ganhar a vida construindo piscinas em casas de rico na capital paulista.

O Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC) deu resultado, já beneficiou 1,5 milhão de pessoas. Os moradores são envolvidos, a ASA criou uma cartilha para ensinar cada um a confeccionar sua própria cisterna. Em 2007 e 2008, a Fiocruz fez uma pesquisa e identificou impactos positivos até mesmo na saúde das crianças, já que os casos de diarreia, que quase sempre são causados pela ingestão de água impura, tinham diminuído drasticamente.

Nessa última década, o P1MC sofreu alguns revezes com relação a financiamento, precisou cumprir detalhes burocráticos. E a ASA sempre me manteve informada. Não foi diferente na semana passada, quando na quinta-feira recebi um email da assessoria da ONG alertando para o fato de que o Programa estava correndo o risco de sofrer um corte drástico durante a aprovação do orçamento no Congresso (leia aqui), por conta do ajuste fiscal. Há R$ 200 milhões destinados para esse recurso e inicialmente estava prevista uma diminuição de R$ 70 milhões. No fim das contas, o corte foi um pouco menor, de R$ 55 milhões, mas mesmo isso já vai causar um impacto tremendo no programa caso a presidente Dilma Roussef aprove a medida, segundo me relatou Valquíria Lima, coordenadora executiva da ASA, com quem conversei por telefone na tarde de sexta-feira:

“A previsão orçamentária para as cisternas este ano, de R$ 200 milhões, já era baixa em relação às necessidades da região. Estamos vivendo uma seca tremenda, e ela tende a se alastrar. As famílias do campo que já têm essa tecnologia social, as cisternas, estão sofrendo a seca com menos impacto em suas vidas. O problema não é do governo federal, que continua com um olhar atento aos mais pobres, mas dos políticos que estão sugerindo esse corte”, disse Valquíria.

Sim, já se conseguiu construir um milhão de cisternas, como era o objetivo no início do Programa. Ocorre que hoje a região precisa de mais, e segundo estimativas do próprio governo federal será necessário construir, no mínimo, mais 300 mil cisternas além das que já estão dando conta do recado. Com um orçamento apertado isso não será possível, e a ASA já está se preparando para fazer uma forte mobilização no sentido de exigir que a presidente Dilma Roussef não aprove que se tire recursos do P1MC.

“O Semiárido hoje está dentro de um contexto de crise hídrica, como todo o resto do país. As condições das famílias dos campos melhoraram por causa das cisternas, mas já na cidade está tudo muito ruim. Tem sido muito sacrificante viver sem água, e isso pode piorar. Não é possível que, num cenário como esse, nós ainda tenhamos que viver um corte de recursos que vai causar um impacto social tremendo na região”, disse Valquíria.

O Programa das Cisternas já teve ajuda de empresas, sobretudo no início. Depois os recursos do sistema privado começaram a escassear, vêm sendo pingado, sob forma de doações, nada mais. Valquíria, no entanto, acha que o caminho é este mesmo: “Nós compreendemos que políticas públicas se faz é com recursos públicos”.

Essa é uma história que nos aproxima da teoria que tanto estamos vendo ser debatida nos gabinetes dos políticos, sobre a necessidade de ajustes fiscais. Não há dúvida que há uma crise econômica, mundial inclusive, e que o ajuste se faz necessário. Mas manter a proteção aos mais pobres é o que pode, como diz o economista Ladislau Dowbor no seu livro “Democracia Econômica” (Editora Vozes), “orientar a economia para o que dela a sociedade deseja”.

“O bem comum parece uma boa definição do que queremos, pois compreendemos cada dia mais que direcionar a economia em função das minorias dominantes gera problemas para todos, inclusive para as próprias minorias.... Ultimamente temos olhado para a economia apenas do ponto de vista do ritmo do crescimento, esquecendo-nos de pensar o que está crescendo, para quem e com que impactos”.

A economia deve ser um meio para nos ajudar, como ciência, a “selecionar as soluções mais positivas, a evitar os impasses mais perigosos”, acrescenta o economista. Parece claro, no caso das cisternas, que o impasse perigoso ao cortar orçamento para a construção de uma tecnologia que, se não acabou com o problema, tem ajudado bastante a manter mais digna a vida das pessoas que lidam com a seca, é voltar a uma época em que os pobres não eram prioridade. E se tornavam quase invisíveis por trás das decisões tomadas por quem, bem longe do problema, fazia as leis. G1 Natureza

*Suplemento que era publicado junto ao jornal “O Globo”  de 2003 a 2012, com foco em sustentabilidade

Compartilhar Conteúdo

444