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O Estado e o PCC - Marcia de Holanda Montenegro

Os recentes confrontos entre facções criminosas no País reviveram velhas reflexões: a consabida falência do sistema carcerário brasileiro, que não promove a reintegração social do preso, seja pelo déficit de vagas, seja pela corrupção, responsável pelo ingresso de drogas, celulares e armas nas prisões; o crescimento das organizações criminosas; e a discussão sobre a forma como o Executivo, o Judiciário e o Ministério Público têm enfrentado essas mazelas. Não é de hoje que algo de extremo horror precisa acontecer para que as autoridades que administram o País acordem e se movimentem.

A reação governamental exibe total despreparo para descer à raiz do problema. O que se percebe é a surpresa das autoridades diante de uma situação de cuja gravidade a sociedade tem perfeito conhecimento. Em razão disso, tentam minimizá-la, subestimando a inteligência do povo – o que se mostra tão assustador quanto os massacres nos presídios.

Nesse contexto, é dever das autoridades que estiveram à frente da administração de nosso Estado nos últimos decênios fazer seu mea culpa. Em São Paulo nasceu e proliferou a maior facção criminosa do País, o Primeiro Comando da Capital (PCC). Sua força e seu raio de ação refletem o poderio econômico do Estado paulista. Ao longo de 20 anos, essa organização estendeu tentáculos a outras cidades prósperas do interior, até passar a outros Estados, por onde se projetam as rotas de entrada e saída de drogas no País. O gigantismo do PCC ofuscou a pioneira organização criminosa, oriunda do Rio de Janeiro, existente há cerca de três décadas, o Comando Vermelho.

Se a facção criminosa paulista cresceu semelhando uma empresa capitalista, é pela imposição de drásticas leis de obediência, que lhe asseguram a coesão. Agindo à margem do poder público, fica livre de cargas tributárias, um peso para as empresas regulares, enquanto seu código de honra e de justiça se desdobra num âmbito medieval. Com isso domina criminosos, favelas e moradores de certos bairros paulistas, que a ela se submetem pela ausência do Estado. Ao ignorar a proporcionalidade da pena ao mal praticado, suas leis se mostram mais injustas que a de talião. A justiça que pratica é peculiar e a pena comumente imposta – aplicada com modus operandi próprio – é a de morte, resposta opressiva àqueles que descumprem as ordens e a lei do silêncio. Os meios de intimidação são oponíveis erga omnes, basta relembrar o ocorrido em São Paulo em 2006, quando o comércio fechou as portas e os cidadãos de bem se trancaram em casa por vários dias. Até mesmo o Ministério Público paulista teve a porta principal de sua sede danificada por uma bomba, numa demonstração de ousadia e intimidação da facção paulista. Uma vergonha nacional, subestimada pela maior parte das autoridades estaduais e federais, que agora se surpreendem com o poder subterrâneo fomentado nas celas.

Aquela ação organizada do crime cessou em São Paulo, como num passe de mágica, não se sabe ainda, passados dez anos, como ou por quê... No Estado mais rico da Federação, a alegria de policiais ao receberem, por doação, um fuzil apreendido numa ação criminosa, fato noticiado por este jornal meses atrás, é uma prova do descompasso entre a repressão criminal e o crime organizado.

Não há espaço mais apropriado para a conjugação de forças, ideias e experiências do que o ócio nos presídios, aliado, na melhor das análises, à negligência de seus administradores ao permitirem, por ação ou omissão, que o PCC passasse a coordenar de fato estabelecimentos prisionais. Presos filiam-se à facção e passam a devedores quando deixam o presídio, o que os impede, uma vez soltos, de abandonar a vida criminosa. Tempos atrás, rebeliões que tinham como únicos móveis as fugas e a indignação pela falta de estrutura, agora, passaram a ser ditadas com novos objetivos: o fortalecimento e a hegemonia da empresa criminosa.

Não há dúvida de que o sistema prisional estadual paulista tem recebido nas últimas décadas número elevado de autores de tráfico de drogas, o que foi decisivo para o aumento da população carcerária. Não se trata de simples usuários de drogas, como se tem dito; na sua maioria são pequenos traficantes de rua que se postam em lugares estratégicos, como escolas, e os responsáveis pela venda no varejo e pelo sustento do vício dos usuários.

A repressão policial no Estado de São Paulo opera, parte das vezes, com o mesmo critério da década de 1940 – este o ano da promulgação do atual Código Penal –, a idade de ouro dos ladrões de galinha. A prisão em flagrante nas ruas sempre foi a regra e a investigação, a exceção. Essa forma de reprimir delitos exibia bons resultados antes do surgimento do crime organizado. Com isso, o que se viu crescer foi o número de prisões de pequenos criminosos, cooptados com facilidade pelo crime organizado, o que acabou por fortalecer o PCC, já que as bases dessa facção não estão expostas nas ruas. Quando a força repressiva do Estado é direcionada mais a prisões em flagrante sem investigação, o fortalecimento de facções criminosas é favorecido. O que diminui o tráfico ilícito de drogas é a qualidade do traficante preso, e não o número deles.

Houve uma acomodação do Executivo estadual com a situação dos presos. Acreditou-se que o sistema carcerário estava sob controle, dada a falta de rebeliões de peso. Ledo engano. Abrigam os presídios paulistas cursos de graduação e pós em crimes, cujos professores são doutores em crime organizado e os responsáveis pela pacificação dos presídios.

Neste quadro caótico, somente poderá haver uma política competente de repressão à criminalidade com administradores comprometidos com o interesse público, e não com o carreirismo político.

*Procuradora de Justiça, coordenou o Grupo de Controle Externo da Atividade Policial e a Câmara Especial de Crimes Praticados por Prefeitos, do Ministério Público do Estado de São Paulo. O ESTADO DE SP

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