Investimento em esgotamento sanitário aumenta renda e produtividade no Ceará: 'Vivíamos doentes'
Mariana Lemos
Mariana LemosM
MARIANA LEMOS / DIARIONORDESTE
Nascida e criada em Maranguape, há 39 anos Veriana Batista da Silva saiu de uma casa no 'pé da serra' para um sobrado na rua Irmã Irene. Foi lá que deu luz a seus quatro filhos e viu a família crescer, com a chegada de netos. Mas foi só em 2025 que realizou o sonho, que também foi de sua mãe e avó, de dar adeus ao esgoto a céu aberto.
"São mais de 30 anos de luta. Familiares que buscavam a prefeitura e lutavam infelizmente não estão mais aqui para ver. Mas hoje eu estou vendo, graças a Deus, a maravilha que ficou. É muita alegria", lembra.
O chão de ‘terra batida’, as poças de esgoto se formando em frente às casas e o meu-cheiro impediam que a lanchonete montada na calçada da residência operasse de forma adequada.
“Eu tentava limpar todo dia em frente, mas não tinha o que fazer. O pessoal da rua comprava e pessoas vinham de outros bairros para cá também. O pessoal era discreto, não reclamava do cheiro, talvez tivesse vergonha. Mas lanchava e logo ia embora”, lembra.
A casa de Veriana contava com uma fossa artesanal, que precisava ser coletada a cada dois meses, por cerca de R$ 180. Em boa parte da vizinhança, a situação era ainda pior: o esgoto era descartado diretamente na rua.
“No inverno, quando chovia muito, ficavam poças de lama horríveis. E no verão, era muita poeira, muita mesmo. As crianças viviam doentes e até os adultos mesmo. Eu passei uma temporada muito doente”, conta.
O saneamento da rua era uma demanda antiga, cobrada pela vizinhança em todas as campanhas políticas municipais. Quando receberam a notícia da chegada das obras à região, a empreendedora já sabia que o seu dia a dia mudaria para melhor.
As transformações que ocorrem a partir do acesso às redes de esgoto mostram que o esgotamento sanitário não é uma mera questão de infraestrutura das cidades, mas um determinante direto de dignidade humana e justiça social, destaca Luana Viana, doutora em Desenvolvimento e Meio Ambiente pela Universidade Federal do Ceará.
A especialista destaca que o maior desafio da universalização da cobertura está na expansão em áreas urbanas de alta densidade populacional, como a Região Metropolitana de Fortaleza.
“Fortaleza tem mais de 1 milhão de pessoas sem acesso à rede de esgoto, concentradas principalmente em bairros da zona oeste e periferias”, destaca. Nas zonas rurais e pequenas comunidades, a utilização de soluções de esgotamento rudimentares também trava o desenvolvimento.
Atualmente, a cobertura da rede de esgoto no Ceará é de 44%. Fortaleza, Caucaia e Juazeiro do Norte estão entre as 40 piores cidades no ranking de saneamento do Instituto Trata Brasil, que analisa a cobertura de água e esgoto nas cidades brasileiros.
Para ampliar o acesso ao esgotamento sanitário à população cearense, 24 cidades são atendidas por uma Parceria Público-Privada (PPP) firmada entre a Cagece e a Ambiental Ceará. As obras realizadas nos municípios da Região Metropolitana de Fortaleza, como Maranguape, e do Cariri têm investimento previsto de R$ 19 bilhões em 30 anos.
O desafio ainda é grande. O objetivo é chegar à universalização da coleta de esgoto até 2033, com cobertura para pelo menos 90% da população cearense, conforme metas definidas pelo Marco Legal do Saneamento.
André Bicca, diretor-presidente da Ambiental Ceará, destaca que a parceria vê a expansão do esgotamento sanitário como uma ferramenta para reduzir a vulnerabilidade, contribuindo para oportunidades de crescimento da população.
“Desde que iniciou a operação, em 2023, a Ambiental Ceará tem priorizado intervenções em áreas com maior adensamento populacional e, também, territórios mais sensíveis, para promover, quanto antes, os benefícios associados ao esgotamento sanitário”, aponta.
Por meio da operação do esgoto, a empresa busca contribuir com a melhoria dos Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) dos municípios.
LIGAÇÃO À REDE DE ESGOTO É INVESTIMENTO A LONGO PRAZO
A culinária sempre esteve presente na vida da família das irmãs Ana Cláudia de Sousa e Regiane Rodrigues de Sousa. Durante a infância, viram a mãe trabalhar como cozinheira em casas, restaurantes e em um carrinho montado em uma praça.
Agora, as irmãs comandam o próprio negócio de pratinho cearense, na calçada de casa, no bairro Álvaro Weyne, em Fortaleza. Mas isso só é possível porque a rua Coelho Neto, onde moram, agora tem acesso à água tratada e coleta de esgoto.
“Não tinha nada disso, não tinha calçamento. Aqui era uma lagoa, então todos os anos tinha alagamento. Quando veio o saneamento básico, ficou muito mais acessível”, conta Ana Claudia.
O mau cheiro também era um empecilho que vinha em mente para vender alimentos na rua. Hoje, o que se destaca é o aroma de vatapá, baião de dois e creme de galinha. Nas tardes de quarta-feira a domingo, as irmãs montam mesas em frente à residência e atendem clientes até a produção feita diariamente acabar.
Além do pratinho, que foi desenvolvido após as duas participarem do Programa Mãos e Obras, realizado em parceria com a Ambiental Ceará e o Senai, o negócio vende bolos e espetinhos. O sucesso do negócio permitiu melhorar as condições de vida de toda a família.
“Eu estava desempregada. Está sendo muito bom trabalhar com o próprio negócio. A gente pode ajudar um amigo ou outro, engajar a nossa família. É um dom, nós gostamos de fazer comida, então é muito prazeroso”, lembra Regiane.
“Fizemos melhorias aqui na casa. Antes, fazíamos tudo no fogão da minha mãe. Agora, compramos um fogão maior. Em breve, não vamos ficar mais aqui na casa da minha mãe. Vamos alugar um ponto na esquina”, celebra Ana Claudia.
A ligação da casa à rede teria sido um investimento com retorno rápido, mas não foi necessário que a família pagasse nada. A ligação domiciliar é feita de forma gratuita durante a execução de obras de ampliação da cobertura de esgotamento sanitário.
Além do pratinho, que foi desenvolvido após as duas participarem do Programa Mãos e Obras, realizado em parceria com a Ambiental Ceará e o Senai, o negócio vende bolos e espetinhos. O sucesso do negócio permitiu melhorar as condições de vida de toda a família.
“Eu estava desempregada. Está sendo muito bom trabalhar com o próprio negócio. A gente pode ajudar um amigo ou outro, engajar a nossa família. É um dom, nós gostamos de fazer comida, então é muito prazeroso”, lembra Regiane.
“Fizemos melhorias aqui na casa. Antes, fazíamos tudo no fogão da minha mãe. Agora, compramos um fogão maior. Em breve, não vamos ficar mais aqui na casa da minha mãe. Vamos alugar um ponto na esquina”, celebra Ana Claudia.
A ligação da casa à rede teria sido um investimento com retorno rápido, mas não foi necessário que a família pagasse nada. A ligação domiciliar é feita de forma gratuita durante a execução de obras de ampliação da cobertura de esgotamento sanitário.
ACESSO AO ESGOTO LEVA A AUMENTO DE PRODUTIVIDADE
Seja com um negócio próprio ou em um emprego formal, quem mora em uma casa coberta pela rede de esgotamento tem um rendimento maior.
O acesso ao tratamento de esgoto permite que moradores de uma região aumentem os ganhos a partir da melhoria da produtividade, destaca Luana Pretto, presidente executiva do Instituto Trata Brasil.
“Quem tem acesso ao saneamento no Ceará ganha em média R$ 2.064, quem não tem ganha em média R$ 1.584. A escolaridade média também aumenta. Quem tem acesso ao saneamento estuda em média 8,6 anos, quem não tem é de 6,8 anos. Estamos falando de um futuro mais digno, de melhor perspectiva de vida”, aponta.
O aumento de produtividade da força de trabalho deve somar R$ 16,2 bilhões. A valorização imobiliária deve gerar R$ 2,1 bilhões em ganhos, enquanto a renda de atividades de turismo deve aumentar R$ 3,7 bilhões.
Além dos impactos econômicos indiretos, a população vê reflexos imediatos na saúde a partir do tratamento do esgoto. Segundo levantamento da Organização das Nações Unidas (ONU), 80% das doenças e mortes em países em desenvolvimento estão associadas à falta de saneamento.
O Ceará registra 1.709 internações a cada 10 mil habitantes por doenças de veiculação hídrica, como diarreia, cólera, leptospirose e dengue. A falta de saneamento também contribui para a difusão de doenças respiratórias.
“Quando a gente coleta o esgoto, leva para uma estação de tratamento, trata esse esgoto e devolve esse influente tratado para o meio ambiente, a gente deixa de lançar esse esgoto bruto na natureza. Então a gente deixa de poluir os nossos rios e mares, há um benefício ambiental, de regeneração de toda a fauna e flora”, complementa Luana Pretto.
MULHERES SÃO FOCO NO TRABALHO DE SENSIBILIZAÇÃO
Veriana Batista da Silva, moradora do Maranguape, se orgulha de ter sido uma das primeiras de sua rua a conectar a casa à rede de coleta e tratamento de esgoto. Ela também atuou para convencer vizinhos em dúvida a fazer a ligação.
“Talvez eu tenha sido a primeira ou a segunda a aceitar. Como que a gente lutava tanto e não ia aceitar? No começo, teve pessoas que não queriam, mas depois foram fazendo. Eu falava que todos deveriam fazer”, lembra.
Apesar dos inúmeros benefícios do descarte correto de esgoto à população e ao ecossistema, ainda é possível encontrar resistência de moradores a aderir à rede de coleta e tratamento.
A difusão dos impactos positivos é um dos desafios das equipes de sensibilização, que visitam as casas de regiões que vão receber obras de saneamento, explica Sâmia Régia, coordenadora de Interação Social da Cagece.
“A gente fala sobre a valorização de imóvel, de como as casas com saneamento têm um valor econômico muito maior no mercado. Também explicamos dos riscos que a fossa séptica tem para o solo e a contaminação”, aponta.
Associar o esgotamento a melhorias de renda e qualidade de vida é fundamental para que as famílias não rejeitem o saneamento.
“A rede de esgoto chegando no empreendimento vai gerar, de qualquer forma, uma conta a mais. Então nós explicamos sobre a tarifa social e em, paralelo, buscamos apoiar a comunidade com cursos para que ela realmente se estruture”, afirma Sâmia.
Há uma atenção especial para que as mulheres tenham voz ativa nesse processo, segundo a coordenadora da estatal.
“Quando há falta de saneamento e a família adoece, a mulher é a mais impactada. Ela acaba carregando uma carga muito grande dentro das famílias. Mas na hora de tomar a decisão da adesão, quem faz isso é o marido. Então a gente tem um grupo de trabalho com mulheres para reforçar a importância de elas serem protagonistas dessa decisão”
MAIOR PPP DE ESGOTAMENTO SANITÁRIO DO BRASIL
As obras de infraestrutura de esgoto nos municípios cearenses preveem a construção de 27 estações de tratamento de esgoto, 4.000 quilômetros de novas redes e 249 estações elevatórias.
A estimativa é que 4,3 milhões de pessoas sejam atendidas, com coleta e tratamento de 1 bilhão de litros de esgoto. A parceria-público-privada entre Cagece e Ambiental Ceará, assinada em 2023, é o maior contrato de saneamento desse tipo do Brasil.
Os municípios devem chegar a cobertura média de esgoto de 60% até 2028, com expansão do serviço para 90% da população até 2033. Em Fortaleza, investimentos de mais de R$ 162 milhões devem viabilizar o acesso a rede de 170 mil moradores de diversos bairros, como Bonsucesso, Jóquei Clube, Sapiranga e Barroso até 2026.
Luana Viana, professora da UFC, afirma que as metas de coberturas são ambiciosas e dependem de conscientização coletiva e engajamento das prefeituras e entes regulatórios.
As tecnologias de coleta de esgoto em uso no Ceará são adequadas para o contexto de clima, custo e porte. Mas ainda é preciso aprimorar as estratégias de pós-tratamento, desinfecção e monitoramento, pondera Luana Viana.
“No nosso estado, um pouco mais de 60% do esgoto coletado (40% do total, ou seja, 60% de 40%) passa por algum tipo de tratamento, ou seja, uma parcela considerável ainda é lançada em corpos hídricos inadequadamente, o que compromete rios urbanos, como Cocó, Maranguapinho e Pacoti, e também afeta a balneabilidade das praias”, aponta.
A especialista ressalta que o Ceará tem potencial de ir além dos 90% de cobertura, contemplando todas as áreas periféricas.
"Capitais brasileiras, como Curitiba e Salvador, já são exemplo de que é possível ir além de 80% de coleta/tratamento. Chile já atingiu níveis próximos da universalização, cerca de 97% de coleta e 99,8% de tratamento. Essas referências indicam a distância que ainda precisa ser superada no Ceará", explica.
As obras de esgotamento também devem chegar aos outros municípios onde a Cagece atua nos próximos anos. A companhia deve lançar, ainda em 2025, uma nova PPP para esgotamento sanitário no Ceará.
Com investimento de R$ 7 bilhões, obras de sabeamento devem ser realizadas em 128 cidades, atendendo 1,2 milhão de pessoas. A companhia conta com financiamento de R$ 1,26 bilhão da Agência Francesa de Desenvolvimento, com contrato firmado em 14 de agosto.
Mariana Lemos