Governo Lula 3 somará ao menos R$ 387 bi em gastos fora da meta fiscal com pacote antitarifaço
Por Daniel Weterman e Alvaro Gribel / O ESTADÃO DE SP
BRASÍLIA - O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vai totalizar em seu terceiro mandato pelo menos R$ 387,8 bilhões em gastos não contabilizados na meta fiscal, uma das principais regras das contas públicas no País. O número foi atingido com o pacote de socorro às empresas afetadas pelo tarifaço do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anunciado na quinta-feira, 13, que vai retirar R$ 9,5 bilhões da meta até 2026.
O plano de socorro, batizado de Brasil Soberano, terá R$ 4,5 bilhões em gastos com aportes em fundos garantidores e R$ 5 bilhões em renúncias de receitas do Reintegra, programa que beneficia exportadores, ambos fora da meta. O líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), apresentou um projeto de lei complementar para autorizar o governo a fazer essa manobra, que precisa passar pelo crivo do Congresso Nacional.
A medida foi criticada por especialistas, que apontam uma prática recorrente da equipe econômica de burlar a regra em momentos de emergência e diminuir a credibilidade da âncora fiscal. De 2023 a 2026, os gastos fora da meta de resultado primário somarão ao menos R$ 387,8 bilhões, segundo números do Tesouro Nacional analisados por especialistas consultados pelo Estadão.
Procurado, o Ministério da Fazenda afirmou que 87% do montante “decorre da necessidade de reverter o calote em credores de precatórios aplicado pelo governo Bolsonaro e de aprovar uma PEC de Transição para recompor o represamento artificial de despesas essenciais e cobrir buracos no Orçamento deixado pelo governo anterior” (leia mais abaixo).
Fábio Serrano, diretor executivo de Pesquisa Macroeconômica do BTG Pactual, calcula que R$ 334 bilhões estão fora da meta nos três primeiros anos de governo, e estima que pelo menos R$ 55 bilhões em precatórios (dívidas judiciais da União) serão excluídos no ano que vem. Com isso, serão R$ 389,7 bilhões em quatro anos, no total.
O cálculo é similar ao de Tiago Sbardelotto, auditor licenciado do Tesouro e economista da XP Investimentos, que chegou a R$ 387,76 bilhões. Em ambos os casos, o risco é que a conta fique maior, com novas concessões feitas pelo Congresso durante a tramitação da proposta de socorro, e com a proximidade das eleições presidenciais de 2026.
Os valores incluem o reajuste do Bolsa Família feito em 2023 pela PEC da Transição, o pagamento do calote dos precatórios dado no governo Jair Bolsonaro (PL), as medidas de socorro à calamidade climática no Rio Grande do Sul e o ressarcimento de aposentados e pensionistas vítimas da fraude no INSS, entre outras despesas.
“O programa Brasil Soberano nos pareceu bem calibrado para lidar com os impactos das tarifas, apesar de o número ter ficado um pouco acima do esperado. No entanto, a exclusão da meta aumenta o risco de que seja ampliado no Congresso, já que a operação contábil remove uma restrição orçamentária que limitava a medida”, diz Serrano.
“Essa iniciativa se soma a diversas outras retiradas da meta ao longo dos últimos anos. O arcabouço funciona num sistema de banda (intervalo de tolerância) justamente para acomodar choques; mas, como o governo federal tem consistentemente mirado a banda inferior e não o centro da meta, todos os choques sofridos nesse período têm sido acomodados fora da contabilização do resultado primário (saldo entre receitas e despesas, sem contar os juros da dívida)”, completa o economista.
Sbardelotto diz que esse tipo de prática acaba enfraquecendo a meta de resultado primário como um indicador confiável sobre as contas públicas.
“O grande problema é que a multiplicação de deduções, algumas de forma casuística, acaba fragilizando a meta de resultado primário como indicador de esforço fiscal do governo”, afirma. “Em outros termos, o governo pode até cumprir a meta, mas o déficit real, o que impacta efetivamente a dinâmica da dívida pública, continua sendo muito maior”, diz.
Em 2023, o governo aumentou o espaço do antigo teto de gastos em R$ 145 bilhões, que ficaram fora do cálculo da meta, após a aprovação da PEC da Transição no ano anterior. Também em 2023, o STF liberou o pagamento de R$ 92,4 bilhões em precatórios que o governo Bolsonaro havia prorrogado e os valores não foram contabilizados na regra fiscal.
Parte do pagamento de precatórios continuou fora do cálculo da meta nos anos seguintes. Recentemente, o governo patrocinou uma proposta na Câmara para adiar em dez anos o retorno total desses valores à baliza fiscal. Agora, com o pacote do tarifaço, o Poder Executivo foi além e propôs não só a retirada de mais despesas da meta, mas também a exclusão de renúncias de receitas da contabilidade.
Com o Reintegra, que gera créditos tributários para exportadores, serão R$ 5 bilhões a menos na arrecadação que aumentarão o déficit, mas que serão contabilizados como se a receita tivesse entrado. Se o governo ressarcir as empresas em vez de abater o pagamento de outros impostos, como prevê o programa, os gastos também não entrarão no cálculo da meta.
As exclusões foram autorizadas por leis aprovadas no Congresso, como no caso da PEC da Transição, ou por decisões do STF, como nos precatórios. Para o analista João Pedro Leme, da Tendências Consultoria, as despesas fora da meta com dívidas judiciais e de socorro à crise climática no Rio Grande do Sul se justificam. Os demais gastos fora da contabilidade tradicional, por sua vez, não são defensáveis, avalia.
No caso dos precatórios, o Judiciário entendeu que havia um princípio maior, de pagar o que se deve, em nome da segurança jurídica. E, para o Rio Grande do Sul, a medida foi um socorro a uma calamidade humanitária com flexibilização autorizada na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). “O atual estado das contas públicas passa a divergir muito daquilo que conta para a meta. A regra fiscal fica como se estivesse balizada em uma ficção. É um mundo onde algumas coisas não importam ou importam menos”, diz Leme.
O piso e o centro da meta
Os especialistas avaliam que o governo deveria incluir os gastos do pacote do tarifaço na meta. A primeira observação é que há um crescimento na arrecadação que poderia acomodar essas despesas, com receitas com leilões de petróleo e recebimento de resultados financeiros de bancos públicos. Nesse caso, outros gastos deveriam ser congelados.
Além disso, o governo deveria buscar o centro da meta fiscal e usar o espaço de tolerância (leia mais abaixo) para bancar gastos imprevisíveis. O Executivo, porém, tem usado essa margem para despesas corriqueiras e recorrido a medidas fora da meta para situações extraordinárias, como apontou relatório recente da Consultoria de Orçamentos do Senado.
Colocar os gastos na meta faria com que o governo tivesse de cortar outras despesas para cumprir a regra. Integrantes do Executivo dizem que isso inviabilizaria os serviços públicos, as agências reguladoras e os investimentos. O caixa da União está comprometido com despesas obrigatórias, como os benefícios previdenciários, o que diminui cada vez mais a folga para o custeio da máquina e obras públicas.
“O Orçamento é rígido, mas, ao invés de isso ser um ponto argumentativo para abrirmos exceções à regra e fingir que as regras não importam, é preciso desenhar melhor a lista de prioridades”, opina João Pedro Leme.
Entenda o que é a meta de resultado primário
A meta de resultado primário é uma regra de equilíbrio entre receitas e despesas públicas (sem contar o endividamento) instituída pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) em 2000. O governo é obrigado a perseguir o objetivo, delimitado a cada ano. O novo arcabouço fiscal, aprovado em 2023, permitiu ao Executivo trabalhar com uma meta com um piso de tolerância que, na prática, admite resultados piores.
O objetivo em 2025 é zerar o déficit público, com um piso de tolerância de déficit de R$ 31 bilhões. O governo já está usando esse limite e admitindo fechar as contas no vermelho.
Em 2026, a meta é gerar um superávit de R$ 34,3 bilhões, com piso de tolerância de déficit zero. Quando uma despesa fica fora da meta, o gasto continua existindo e é real, mas não é considerado na hora de calcular se o governo cumpriu ou não o objetivo.
Fazenda atribui maior parte do gasto ao governo Bolsonaro
Procurado, o Ministério da Fazenda afirmou que, dos R$ 389 bilhões fora da meta levantados, R$ 337 bilhões (87%) “decorrem da necessidade de reverter o calote de precatórios aplicado pelo governo Bolsonaro e de aprovar uma PEC de transição para recompor o represamento artificial de despesas essenciais e cobrir buracos no orçamento deixado pelo governo anterior, como Bolsa Família, Farmácia Popular, entre outros”.
Do restante, a pasta diz que a Lei Paulo Gustavo (R$ 4 bilhões) foi aprovada em 2022 sem previsão orçamentária e que os R$ 9,5 bilhões do pacote antitarifaço, batizado de Brasil Soberano, são voltadas a “apoiar empresas e trabalhadores impactados por tarifas unilaterais impostas ao Brasil”.
A pasta também diz que R$ 30 bilhões foram destinados ao enfrentamento do “maior desastre climático da história recente do País, ocorrido no Rio Grande do Sul em 2023″. A Fazenda argumenta ainda que os R$ 8 bilhões restantes representam apenas 2% do total e que “parte decorre de decisões judiciais e determinações de órgãos de controle, sem relação com iniciativas discricionárias do Poder Executivo”.