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Valor repassado pelo governo a ONG de petistas é o maior desde a criação de programa que distribui cisternas, há 22 anos

Por — Brasília / O GLOBO

 

 

Um programa do Ministério do Desenvolvimento Social para distribuir cisternas a famílias carentes concentra R$ 640,1 milhões, 85% da verba total, em uma Organização Não Governamental (ONG) comandada por integrantes do PT, partido do presidente Lula. Uma parte desses recursos foi repassada a outras entidades comandadas por ex-integrantes do governo do Piauí na gestão de Wellington Dias, atual chefe da pasta. Procurado, a pasta negou irregularidades e afirmou que “vínculos político-partidários das organizações” não foram considerados na contratação.

 

O acordo do Ministério do Desenvolvimento Social com a Associação Um Milhão de Cisternas para o Semiárido (P1MC) foi assinado em 2023, após o governo decidir ampliar o programa, investindo R$ 755,8 milhões. Do total desses recursos, R$ 640,1 milhões foram destinados à entidade comandada por dois integrantes do PT, filiados ao partido desde 1987. O valor representa o maior volume repassado pela pasta a uma mesma ONG desde o início do programa, há 22 anos.

 

Procurada, a ONG destaca que sua contratação se deu por meio de edital, que considerou a atuação por mais de duas décadas na região do semiárido, onde diz ter atendido 1,2 milhão de famílias. Nesse formato, o ministério adota um sistema de pontuação, que privilegia entidades com experiência no tipo de serviço que será prestado. “A presença de lideranças sociais com histórico político ou comunitário não fere a legalidade ou a legitimidade do trabalho técnico desenvolvido. O processo é legal, auditável e impessoal”, diz a entidade.

 

Terceirização

A associação não executa as obras. A construção das cisternas é feita por entidades subcontratadas, que ficam responsáveis por executar o serviço em regiões específicas. Um levantamento feito pelo GLOBO mapeou 37 ONGs comandadas por filiados ao PT subcontratadas por meio do programa de cisternas. Juntas, essas organizações receberam R$ 152 milhões até agora, o que representa 33,9% de todo o montante pago pelo governo federal à P1MC por meio do convênio em vigor.

 

Entre as subcontratadas da ONG está a Cooperativa para o Desenvolvimento Rural e Sustentável da Agricultura Familiar do Piauí (Cootapi), que recebeu R$ 9 milhões para construir 775 cisternas no estado do ministro Wellington Dias. A entidade é comandada por dois integrantes do PT que ocuparam cargos no governo de Wellington Dias, em 2017. Um deles exerce uma função comissionada na gestão de Rafael Fonteles (PT), sucessor do ministro no Executivo estadual. Procurada, a Cootapi não respondeu.

 

No município de Aracati (CE), a 150 quilômetros da capital Fortaleza, a Cooperativa Mista de Trabalho (Comtacte) foi subcontratada por R$ 4,6 milhões pela P1MC para construir 769 cisternas em cinco cidades do interior cearense. A entidade é comandada por um integrante do PT e ex-assessor do prefeito da vizinha Itaiçaba (CE), Antoniel Holanda (PT). No endereço onde a cooperativa está registrada, no bairro de Farias Brito, há apenas uma casa simples de alvenaria. Questionados, a cooperativa e seu presidente não responderam.

 

Uma ex-assessora de um deputado estadual do PT é quem está à frente da entidade subcontratada para fornecer cisternas em municípios de Pernambuco. O acordo prevê o repasse de R$ 6,4 milhões para o Centro de Educação Comunitária Rural (Cecor). O GLOBO entrou em contato com a ONG, mas não obteve retorno.

 

Os repasses para a construção de cisternas foram feitos também para duas entidades dirigidas por ex-candidatos a vereador pelo PT em municípios do interior da Bahia. Em Guanambi, a 660 quilômetros de Salvador, o Instituto de Formação Cidadã foi contemplado com um contrato de R$ 3,4 milhões. Já em Manoel Vitorino, distante 400 quilômetros da capital, um acordo de mesmo valor foi fechado com o Centro de Agroecologia do Semiárido. Procurados, os dirigentes negaram que a filiação partidária influenciou a contratação.

 

Histórico de problemas

As obras de cisternas têm histórico de problemas. Um relatório de auditoria da Controladoria-Geral da União (CGU) apontou uma série de irregularidades identificadas na execução do programa. O órgão vistoriou 205 equipamentos entregues entre 2020 e 2022 e constatou que 31% deles apresentavam algum tipo de defeito, como vazamentos e infiltrações. Dessas unidades, 10% estavam inutilizáveis por causa de rachaduras ou perda de água.

 

A auditoria da CGU também destacou como ponto de atenção a atual concentração dos recursos em uma única entidade, mas atribuiu o fato aos critérios de seleção utilizados pelo Ministério do Desenvolvimento Social, que leva em conta a experiência na área. O relatório do órgão de controle afirma que “os riscos existentes estão suficientemente controlados”.

 

O Programa de Cisternas foi criado no primeiro mandato de Lula e, desde o início, firmou contratos com a ONG P1MC, que recebeu mais de R$ 2 bilhões ao longo dos últimos 22 anos. A iniciativa teve o orçamento esvaziado durante o governo Bolsonaro. Em 2022, foram entregues pouco mais de três mil unidades, ante uma média de 58 mil por ano até 2018.

 

A retomada do projeto Água para Todos, que inclui o Programa de Cisternas, foi uma das promessas eleitorais de Lula. A previsão do governo é investir R$ 1,5 bilhão até 2026, alcançando mais de 100 mil famílias.

 

Logo após assumir o Ministério do Desenvolvimento Social, no início de 2023, Welligton Dias determinou uma revisão dos contratos firmados na gestão Bolsonaro e a investigação sobre denúncias do mau uso dos recursos públicos. Na época, uma reportagem do jornal “Folha de S.Paulo” mostrou que uma ONG contratada em Minas Gerais estava cobrando dinheiro de famílias pobres para instalar os equipamentos.

 

Para participar do programa, as ONGs subcontratadas também precisam ser credenciadas pela pasta, que é responsável por analisar as prestações de contas. Segundo o ministério, essas entidades têm que demonstrar experiência na execução de projetos voltados ao desenvolvimento rural ou segurança alimentar.

 

Especialistas afirmam que esse modelo de parcerias, em que o serviço é delegado a entidades subcontratadas, dificulta a fiscalização e o rastreamento do uso de recursos públicos. Para Guilherme France, coordenador de pesquisas da ONG Transparência Internacional, uma forma de aumentar a fiscalização é a divulgação de todos os documentos envolvendo as contratações.

 

— A cobrança por transparência já está prevista na legislação. Quando falamos em contratações de grande vulto, como essas, de quase R$ 700 milhões, as exigências sobre as organizações que recebem recursos públicos deveriam ser maiores. Essas instituições precisariam instituir programas de integridade efetivos, capazes de impedir conflitos de interesse, contratações indevidas e ineficiência financeira e econômica — afirmou ele.

 

O ministro Welligton Dias durante anúncio de investimentos em programa de cisternas em PernambucoO ministro Welligton Dias durante anúncio de investimentos em programa de cisternas em Pernambuco — Foto: Roberta Aline/Divulgação/MDS

 

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