81% das cidades do CE não receberam recursos federais do Compromisso Criança Alfabetizada em 2024
O Ceará é o primeiro estado brasileiro a ter superado, ainda em 2023, a meta traçada pelo governo federal de chegar ao índice de 80% de alfabetização infantil até 2030. Com 85% das crianças alfabetizadas na idade certa, o índice estadual reflete uma realidade dos municípios cearenses. Das 184 cidades cearenses, 150 também alcançaram (ou superaram) a meta de 80%. Os dados são do 1º Relatório de Resultados do Indicador Criança Alfabetizada, divulgado em 2024.
Os resultados, no entanto, não significam que não existem riscos no processo de alfabetização no Ceará. Esse é o alerta do Tribunal de Contas do Ceará (TCE-CE) após auditoria realizada no ano passado.
A Corte analisou como está a implementação do Compromisso Nacional Criança Alfabetizada nas cidades cearenses — o programa federal foi criado em 2023 para garantir o direito à alfabetização das crianças brasileiras até o final do 2º ano. A Corte apontou quatro riscos prioritários nas políticas de alfabetização nas cidades cearenses. Foram eles:
"Essas questões têm alta probabilidade de ocorrência e impacto significativo, exigindo atenção prioritária. Recomenda-se fortalecer o apoio técnico e financeiro aos municípios, capacitar gestores e priorizar a alfabetização nas agendas políticas locais", pontua o relatório final da auditoria.
O ponto financeiro é um dos analisados pelo levantamento. Segundo os dados coletados com as prefeituras cearenses, 81% das cidades não receberam repasses federais vinculados ao Compromisso Nacional em 2024. Contudo, isso não significa que os municípios não estejam sendo beneficiados, informa o Ministério da Educação.
Segundo a pasta do governo federal, as transferências não são feitas de forma direta, ou seja, da União para os municípios. Na verdade, o processo passa pelas gestões estaduais, que são as responsáveis por coordenar as ações com as prefeituras.
Esta reportagem integra série produzida pelo Diário do Nordeste sobre as políticas públicas para Primeira Infância e a atuação de entes públicos para garantir a efetividade das iniciativas voltadas a crianças em seus primeiros anos de vida.
Municípios sem recursos?
A auditoria sobre a implementação do Compromisso Nacional não foi realizada apenas no Ceará. Ela integra uma ação nacional dos tribunais de contas, originada no Comitê Técnico de Educação do Instituto Rui Barbosa, com a coordenação do Tribunal de Contas da União (TCU).
No Ceará, o levantamento foi realizado por meio de formulário eletrônico. Das 184 prefeituras cearenses, 144 responderam ao questionário do TCE Ceará, assim como a Secretaria de Educação do Estado.
Um dos pontos identificados pelo Tribunal foi quanto à chegada de recursos federais e estaduais nas cidades. Entre os municípios cearenses, 81% não receberam nenhum tipo de apoio financeiro da União para alfabetização em 2024, ligada ao Compromisso Nacional Criança Alfabetizada.
Também foi registrada uma ausência nos recursos estaduais. Segundo o relatório do TCE Ceará, 59% das cidades afirmam não ter recebido nenhum apoio financeiro do Estado para alfabetização em 2023 e 2024. "Essa distribuição desigual pode agravar as desigualdades educacionais entre os municípios", pontua o relatório nacional.
Mas o que isso significa para as políticas de alfabetização dos municípios cearenses? "Tem que analisar mais profundamente cada um dos contextos para entender se efetivamente afeta o resultado", pontua a auditora de Controle Externo do TCE Ceará, Priscila Lima.
Integrante do Comitê de Educação do IRB, ela atuou no levantamento a respeito da implementação do Compromisso Nacional Criança Alfabetizada.
"Os resultados de alfabetização do estado do Ceará, dos municípios do estado, são muito bons. (...) A questão de olhar para o orçamento era a seguinte: olha, eu já tenho uma ação de alfabetização nos municípios, veio o Compromisso. O que é que o Compromisso traz de novo? O que adicionalmente vem (para os municípios)?", detalha.
A auditora pontua que o levantamento indica a ausência de recursos, mas "não identifica causas". O indicativo, pontua ela, precisa então ser melhor investigado pelos próprios entes ou mesmo pelos tribunais de conta.
"Dou um spoiler aqui: esse mesmo comitê técnico de Educação (do IRB) está planejando o acompanhamento do Compromisso, quer continuar a monitorar esses resultados", destaca Priscila Lima.
MEC explica envio de recursos
A auditora explica que, por exemplo, existem municípios que conseguem continuar a efetivar as políticas de alfabetização mesmo sem a chegada de recursos de outros entes.
Os dados do levantamento apontam para o cenário descrito pela técnica. Dentre as cidades cearenses, 50% aumentou o orçamento voltado à alfabetização — no comparativo entre 2023 e 2024. Apesar disso, apenas 31% relaciona esse aumento ao Compromisso Nacional.
Outro elemento dado para explicar essa continuidade das políticas de alfabetização é dado pelo Ministério da Educação (MEC). Indagado pelo Diário do Nordeste a respeito da ausência de envio de recursos federais às cidades cearenses, a pasta pontuou que essa transferência nem sempre ocorre de forma direta.
Segundo o MEC, o apoio financeiro é feito a partir de diretrizes e normas emitidas pelo Comitê Estratégico do Compromisso Nacional Criança Alfabetizada (Cenac). Em 2023, o colegiado determinou que os repasses fossem feitos por meio do Plano de Ações do Território Estadual (Pate).
"Por meio do Pate, faz-se um levantamento da demanda por materiais suplementares e formação de profissionais da educação do estado e, especialmente, dos municípios. Com base nisso, o MEC celebra um termo de compromisso com o Estado, transferindo-lhe recursos para que ele execute as ações diretamente com os municípios", explica a nota.
Com isso, "apesar de não haver transferência de recursos financeiro diretamente ao município, ele é beneficiado pelas ações estaduais custeadas com o apoio federal". No Ceará, 148 cidades aderiram ao Pate e, portanto, estariam contempladas pelas ações estaduais financiadas pelo governo federal. Ainda segundo o MEC, foram repassados, ao Ceará, pouco mais de R$ 9,6 milhões para o Pate Material e cerca de R$ 25,6 milhões para o Pate Formação.
A Secretaria de Educação do Estado confirmou o sistema colaborativo oriundo do Compromisso Nacional Criança Alfabetizada.
"O fato dos municípios não terem recebido recursos financeiros oriundos do MEC, não significa que não estejam sendo beneficiados pelo programa, por meio do estado, que coordena e articula as ações estaduais custeadas com o apoio federal. (..) E as ações envolvem os serviços ofertados pelo Paic (Programa Alfabetização na Idade Certa)", reforça a pasta, em nota.
Outros riscos identificados
O relatório do TCE Ceará identificou ainda outros riscos às políticas de alfabetização nos municípios do estado. Um deles é o alto percentual de prefeituras cearenses a não contarem com uma política municipal de alfabetização. Segundo o levantamento, 81% dos municípios ainda não possuem uma Política de Alfabetização formalmente instituída.
"Isso resulta em uma lacuna de governança, onde a ausência de diretrizes claras compromete a capacidade dos gestores municipais de planejar e executar políticas consistentes e eficazes, prejudicando o alcance dos objetivos estabelecidos pelo Compromisso Nacional Criança Alfabetizada", afirma o relatório.
Os efeitos dessa ausência, ainda segundo a avaliação da equipe técnica do TCE Ceará, vão desde ações descoordenadas até a dificuldade na avaliação de resultados e correção de eventuais falhas no processo. As consequências podem chegar, inclusive, no Orçamento. "Sem uma política clara, os recursos destinados à alfabetização podem ser mal direcionados, aplicados em iniciativas que talvez não gerem o impacto desejado ou que não alcancem as populações mais necessitadas", elenca o texto.
O sistema de avaliação das políticas educacionais voltadas às crianças também foi um dos itens avaliados no levantamento. Os dados obtidos pelo levantamento demonstram uma alta participação nas avaliações disponibilizadas pelo Estado e pela União, mas uma ausência de sistemas próprios.
Do total, 97% participam da avaliação anual de matemática e língua portuguesa do Sistema Estadual de Avaliação da Educação Básica do Ceará. O índice de municípios cadastrados na plataforma digital de avaliações periódicas do Compromisso Nacional Criança Alfabetizada também é alto: 92% das prefeituras cearenses.
Além disso, 83% aplicam as avaliações periódicas disponibilizadas pelo Ministério da Educação.
No entanto, quando o TCE Ceará indaga sobre os sistemas municipais de avaliação, é perceptível que essa ainda não é uma prioridade dos municípios: 58% não faz avaliações de Matemática e Língua Portuguesa, enquanto 47% não possui sistema próprio de avaliação do processo de alfabetização.
"A falta de um sistema próprio pode indicar uma dependência dos municípios em relação às avaliações estaduais ou nacionais, o que, apesar de útil, pode não capturar todas as nuances específicas de cada localidade", pontua o relatório da Corte de Contas.
Recomendações às gestões estadual e municipais
Priscila Lima pontua que o levantamento identificou "algumas lacunas" e emitiu "alertas" aos gestores municipais e ao Governo do Ceará. A fiscalização foi elencada pelo TCE Ceará dentro de uma série de auditorias realizadas em torno da temática da Primeira Infância e embasaram o Pacto Cearense pela Primeira Infância, lançado no início de abril.
Na solenidade, realizada no dia 7 de abril, o presidente do TCE Ceará, Rholden Queiroz, explicou que estas auditorias não têm "viés punitivo". "Elas têm mais o viés de estar do lado do Município, apoiando naquilo que tem dificuldade. O Tribunal encontra dificuldades e ajuda a solucionar o problema", destaca.
Além do Tribunal, outros órgãos de controle aderiram ao Pacto, além do Poder Judiciário. Também são signatários o Governo do Ceará e as prefeituras cearenses.
Entre os compromissos assumidos estão, inclusive, alguns focados na Educação. O Governo do Estado, por exemplo, se comprometeu a "apoiar, por meio do sistema de colaboração entre o Estado e os municípios, a ampliação do acesso e qualidade da educação infantil da rede pública de ensino".
Os gestores municipais, por sua vez, se comprometeram a fortalecer a rede de serviços voltados à Primeira Infância, "em especial, na expansão de creches, centros de educação infantil e outros serviços essenciais, garantindo acesso a todas as crianças".
O levantamento sobre a implementação do Compromisso Nacional Criança Alfabetizada também fez recomendações e alertas aos gestores, especificamente sobre os instrumentos de alfabetização.
Ao Governo do Ceará, foi recomendado "manter e ampliar o apoio financeiro aos municípios", garantindo equidade como forma de "diminuir desigualdades existentes".
Além disso, foi sugerido que a gestão estadual oriente as escolas da rede pública de ensino a usar os resultados obtidos nas avaliações periódicas — sejam nacionais ou estaduais — para ajudar na recomposição de conteúdos para estudantes que apresentaram insuficiência na aquisição das competências.
Já aos gestores municipais é recomendado "instituir a Política Municipal de Alfabetização, para aqueles que ainda não o tiverem feito, de forma a direcionar o planejamento municipal na área".
Também é incentivado o apoio às respectivas secretarias municipais de educação — indo desde o apoio financeiro para o processo de alfabetização até o incentivo a identificar, premiar e disseminar "práticas pedagógicas e de gestão exitosas na alfabetização, desenvolvidas por professores da educação infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental".