É a inflação, presidente
Por Vera Magalhães / O GLOBO
A pior aprovação de Lula em todos os seus mandatos, constatada por pesquisa Datafolha divulgada nesta sexta-feira, reflete um momento delicado de seu governo, em que o presidente evidencia a falta de projeto claro para o terceiro mandato, adota medidas e falas contraproducentes no afã de melhorar sua avaliação e flerta com aquela que é a principal razão do descontentamento de amplos espectros da população brasileira com ele: a inflação descontrolada.
Vamos aos números: segundo o Datafolha, Lula é considerado ótimo ou bom por 24% dos brasileiros. Eram 35% em dezembro, o que mostra uma erosão de 11 pontos percentuais em apenas dois meses. O petista faz um trabalho ruim ou péssimo para 41% do universo pesquisado, ante 34% que respondiam o mesmo há dois meses.
Nesse intervalo de tempo, o preço dos alimentos explodiu e o governo viveu duas crises que deixaram clara sua falta de rumo: a lambança da portaria da Receita sobre o Pix, que, por ter sido mal explicada, ensejou uma onda de desinformação segundo a qual o governo federal iria taxar o popular e gratuito meio de transferência de dinheiro, e a própria procura por medidas infrutíferas para controlar o preço dos alimentos.
Nesse segundo round, salta aos olhos uma contradição importante: embora pareça compreender o quanto a inflação descontrolada é fatal para qualquer governo, inclusive para o seu, Lula continua todos os dias fustigando o Banco Central, mesmo agora, que é comandado por Gabriel Galípolo, indicado por ele, pela alta dos juros --necessária justamente para tentar levar a inflação para a meta, que é fixada, diga-se, pelo CMN, integrado por dois ministros... de Lula! Mais inteligente para se livrar do mau humor de quem vai à feira ou ao mercado que sugerir que as troquem itens caros por outros mais baratos, o que é óbvio e denota desespero, seria fechar a matraca por uns meses e deixar o BC fazer seu trabalho.
Enquanto isso, o presidente deveria dedicar seu tempo e sua energia menos a entrevistas sem roteiro em que invariavelmente produz arsenal contra si --como foi esse caso da sugestão de apertar os cintos em vez de cumprir a promessa da picanha com cerveja-- e mais a descobrir qual a marca que quer deixar deste mandato.
O tombo do Datafolha se deu em praticamente todos os segmentos do eleitorado, inclusive nos que garantiram a vitória apertada de Lula sobre Jair Bolsonaro em 2022. Entre os mais pobres, a queda foi de nada menos que 15 pontos. Sinal de que é urgente para ele compreender de fato o que deseja o novo eleitor de baixa renda, baixa escolaridade e que vive no Nordeste, porque a velha receita de salário mínimo e Bolsa Família não atende mais esse público.
Pelo contrário: toda vez que chega no ouvido desse eleitor que o governo estuda a volta do imposto sindical, o fim do saque-aniversário do FGTS ou está bolando formas de regular o trabalho por aplicativos o entendimento que se consolida na ponta é o de que o Estado guloso quer morder o pouco que esse empreendedor que rala dia e noite consegue juntar.
Para esse eleitor, o discurso pisado e repisado por Lula de defesa da democracia tem pouco ou nenhum apelo. Trata-se de um contingente que ou votou em Bolsonaro ou mesmo votou nele, mas não vê o 8 de Janeiro como golpe ou não coloca isso no centro de suas preocupações. Por isso, flertar com a ideia de enfrentar Bolsonaro, como Lula fez em outra entrevista recente, é duplamente problemático: porque é contraditório justamente com a ênfase no risco que ele representa para a democracia, e porque talvez Gilberto Kassab tenha dado um alerta correto e, com as variáveis de hoje, seria de fato imprevisível um embate entre os representantes dos dois polos da política brasileira hoje.
Nem no auge da crise do mensalão, em 2005, tanta gente disse rejeitar Lula, segundo o Datafolha. Isso porque, naquela época, não havia um antilulismo e um antipetismo tão arraigados quanto hoje, 20 anos depois, e porque Lula conseguiu, mesmo enfrentando sucessivas tempestades naquele ano e em 2006, acenar com conquistas econômicas e sociais que lhe garantiram a reeleição.
Agora, mesmo com indicadores positivos de macroeconomia e tendo aumentando a renda média do país e o tirado do mapa da fome, ao qual havia regressado nos anos Bolsonaro, o presidente não consegue reverter essas conquistas a seu favor, porque parece ter perdido um pouco o mapa de como alcançar esse eleitor e o tom para falar com ele.
A reforma ministerial que demora demais a fazer é outro sinal da descalibragem que fica evidente pelos números do Datafolha: as peças que ele fala em trocar não estão em pastas-chave para atingir a população e, nessas últimas, ele pretende manter ministros ineficazes ou porque são amigos de longa data ou porque transformou em questão de honra sua permanência.
O único alívio para Lula no cenário atual se chama justamente Jair Bolsonaro: além de estar na iminência de se tornar réu por tentativa de golpe, o capitão, autocentrado, embola o meio de campo na oposição ao se recusar a deixar que se escolha um candidato para 2026. Lula precisaria aproveitar essa contingência para arrumar seu próprio time, sob pena de chegar fraco a uma eleição em que outros tantos fatores imprevisíveis, como o caos Donald Trump, podem influenciar a decisão do eleitor para um lado ou para o outro.
Fica evidente que a tentação de deixar de vez a austeridade fiscal de lado e apelar a medidas populistas no desespero de se reeleger vai ser cada vez maior, ainda mais se Lula cumprir o que parece disposto a fazer e nomear para o governo mais petistas contrários a Fernando Haddad. Enveredar pelo caminho da gastança não vai resolver a crise de avaliação e pode ainda ser muito deletério para o país.