Com foco na classe média, isenção do IR encorpa tentativas de Lula de atingir faixa mais ‘rachada’ do eleitorado
Por Caio Sartori — Rio de Janeiro / o globo
O projeto do governo federal de isentar do imposto de renda os trabalhadores que ganham até cinco salários mínimos atinge uma parcela numerosa do eleitorado que integra a faixa salarial que mais se divide sobre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nas pesquisas. O plano vai de encontro a outras medidas anunciadas nos últimos meses que focam no mesmo perfil, como o programa de crédito a empreendedores Acredita, e seguem a mesma lógica de afagar aqueles que não integram o bloco dos mais pobres, mas tampouco têm o conforto financeiro dos mais ricos.
Estudo do Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades da USP (Made-USP) sobre os efeitos econômicos das mudanças no imposto calcula que 23 milhões de trabalhadores ocupam hoje a faixa de renda entre R$ 2,5 mil e R$ 5 mil mensais. São estes os principais beneficiários da proposta, caso aprovada. Já a classe média como um todo, que vai além dos que ganham até R$ 5 mil, é estimada em 43% da população pelo Ministério do Desenvolvimento Social.
Na pesquisa da Quaest de setembro, quem ganha até dois salários avalia o governo de forma positiva em diferentes pontos do questionário com razoável vantagem, enquanto os mais ricos desaprovam. Ainda há um longo caminho até a eventual aprovação das mudanças no imposto de renda, mas a leitura política sobre a proposta passa por incrementar a popularidade de Lula na classe média, indicador decisivo para a eleição de 2026.
O levantamento daquele mês, último antes do que será divulgado na semana que vem, mostra que 51% dos entrevistados que ganham entre dois e cinco salários aprovam o trabalho de Lula, contra 46% que desaprovam. Trata-se de empate técnico dentro da margem de erro de três pontos para mais ou para menos. Se aqui o resultado é rachado, os números descolam no estrato dos que recebem até dois salários — 62% de positivo a 32% de negativo — e no dos que abocanham mais de cinco por mês, em que o petista é aprovado por 40% e reprovado por 57%.
Espremidos entre os dois grupos estão os brasileiros da faixa intermediária — que na Quaest equivalem a 44% da amostra, percentual majoritário dentro do total. — O governo entende que essa classe média é muito importante. E não estou dizendo isso apenas em função das pesquisas — afirma o ministro da Secretaria de Comunicação Social, Paulo Pimenta.
Pela ótica eleitoral, com 2026 no horizonte, atrair parte desse contingente de renda média é crucial para Lula ampliar as chances de reeleição. Um risco a ser levado em conta, no entanto, é a inflação. — Não há possibilidade de vitória eleitoral sem cativar a classe média — afirma o presidente do Instituto Locomotiva, Renato Meirelles. — A questão do imposto de renda vai colocar mais dinheiro no bolso, e isso é muito bom politicamente. Mas, se a inflação ou as bets tirarem esse dinheiro, não adianta nada.
O alerta voltado para a inflação joga luz sobre o principal dilema do pacote anunciado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, visto como insuficiente pelo mercado financeiro para garantir o equilíbrio das contas do governo a longo prazo, o que também pode afetar o aumento de preços — já que essa desconfiança se traduz, em parte, na alta do dólar.
Colaboram para o risco inflacionário, ainda, até mesmo os resultados positivos da economia, como o bom ritmo do PIB e a taxa de desemprego nas mínimas históricas. Com a economia aquecida, a oferta poderá não dar conta da demanda, com chance de resultar em inflação.
Empreendedorismo
Na esfera política, o poder de compra é considerado fator-chave na tomada de decisão do eleitor. — Dinheiro no bolso tem um peso enorme no voto, assim como a inflação de alguns produtos. Tem que entregar a picanha e a cerveja prometidas na campanha — exemplifica Renato Meirelles. Na esteira do diagnóstico, houve críticas internas no governo voltadas para o foco praticamente exclusivo nos mais pobres, o que teria deixado quase metade dos brasileiros com a sensação de invisibilidade.
— Queremos criar um país com padrão de consumo, educação e transporte de classe média — afirmou o presidente Lula em fevereiro. Nos últimos meses, pulularam ideias para tentar reverter o cenário e alinhar o governo à defesa feita pelo presidente. Além da isenção do imposto de renda, promessa de campanha de Lula em 2022, foi lançado o Acredita, programa do Ministério do Empreendedorismo, da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte que oferece crédito a empreendedores — um tipo de trabalhador com o qual o PT, forjado na luta sindical do Brasil de mais de quatro décadas atrás, ainda sofre para lidar.
— É uma tentativa de chegar nesse público. O presidente tem falado muito do entendimento dele de que é uma nova relação de trabalho que se criou. O cara não é um trabalhador formal, mas também não é um empresário. Sinto cada vez mais o Lula percebendo isso — afirma ao GLOBO o ministro da pasta, Márcio França. O empreendedor, avalia França, não tem uma opinião inexorável sobre o governo.
— Ao contrário de cortes mais ideológicos, como militares, agronegócio, evangélicos, esse pequeno empreendedor não tem um conteúdo contra o Lula. Ele tem bronca de governos em geral, que ficam “mandando imposto para ele pagar” enquanto cria “bolsas” que não são para ele — observa. — É um sujeito vulnerável, passível de mudar de opinião: se o negócio dele andar, ele começa a achar o governo bom.
Ampliação do Pé-de-Meia
Também foi ventilada, na Educação, a extensão de um dos programas mais bem-sucedidos do governo: o Pé-de-meia, que hoje oferece uma “poupança” a estudantes do ensino médio de famílias inscritas no CadÚnico. A ideia de aumentar o projeto abarcaria todos os alunos do ensino médio da rede pública.
Na leitura do presidente do Locomotiva, Lula ainda fala “mais para quem está no formal do que no informal”, mas o Acredita começa a jogar para esse outro público. Só que ainda falta, diz, uma “perspectiva de futuro” na narrativa do governo. A expressão é a mesma usada no mês passado pelo favorito para suceder Gleisi Hoffmann na presidência do PT, Edinho Silva, ao GLOBO.
Alguns ensaios disso foram feitos. Chamou atenção, no anúncio de Haddad sobre o pacote fiscal, o uso da palavra “prosperidade”, muito presente no ideário evangélico neopentecostal e no imaginário empreendedor. Nesta quinta-feira, em Brasília, a sigla do presidente Lula promove o seminário “A realidade brasileira e os desafios do Partido dos Trabalhadores”, com dirigentes, parlamentares e candidatos eleitos nas últimas eleições municipais.
O saldo da disputa deste ano — foram conquistadas apenas 252 prefeituras, sendo Fortaleza a única capital — fez o partido refletir sobre as mudanças no eleitorado.