Lula não pode mais fugir ao imperativo fiscal
Por Editorial / O GLOBO
O Brasil vive uma crise fiscal aguda e, se as medidas necessárias não forem tomadas a tempo, terá de enfrentar um cenário duplamente catastrófico: estagnação no crescimento e alta na inflação. A tarefa inescapável para fugir desse prognóstico é ajustar as contas públicas. Enquanto o governo gastar mais do que arrecada, não haverá conserto. Levando em conta o pagamento de juros da dívida, o buraco supera 6% do PIB. Sem os juros, está ao redor de 1%. Mantida a situação atual, a dívida como proporção do PIB crescerá em todos os anos do atual governo, mesmo que a economia registre expansão anual entre 2% e 2,5%. É real o risco de Luiz Inácio Lula da Silva terminar seu terceiro mandato presidencial com a dívida bruta em 82% do PIB, 10 pontos percentuais acima do patamar de 2022.
Essa é a realidade puramente aritmética, que ele resiste a aceitar. Desde o ano passado, Lula adota um discurso ambíguo em relação às metas estipuladas pelo próprio governo. Ora faz questão de ressaltar seu compromisso com a responsabilidade fiscal, ora põe em dúvida a urgência de cumprir os objetivos. Em entrevista à TV Record nesta semana, voltou à carga: “É apenas uma questão de visão. Você não é obrigado a estabelecer uma meta e cumpri-la se você tiver coisas mais importantes para fazer”. Noutro trecho, aliviou e disse que fará “o que for necessário para cumprir o arcabouço fiscal”.
Como no filme “Feitiço do tempo”, em que os personagens vivem as mesmas situações repetidamente, as declarações de Lula mais uma vez lançaram a Bolsa de Valores para baixo e o dólar para o alto. Foi a preocupação com a desvalorização do real que o motivou a determinar no início do mês o cumprimento “a todo custo” das metas previstas para 2024, 2025 e 2026. Com a intenção de resgatar alguma credibilidade, o governo anunciou o o plano de congelar R$ 15 bilhões no Orçamento deste ano e de enviar ao Congresso corte de R$ 26 bilhões no de 2025.
Nesta quinta-feira, Lula se reuniu com ministros no Palácio do Planalto para discutir os detalhes de um pente-fino nos programas sociais. A iniciativa é positiva, por mostrar que o governo entendeu os limites da estratégia de tentar apenas aumentar a arrecadação. Mas é insuficiente. Em artigo publicado no GLOBO, o ex-secretário do Tesouro Nacional Mansueto Almeida explicou por que reduções tímidas nas despesas não resolverão o problema. “O ajuste fiscal necessário para colocarmos as dívidas bruta e líquida numa trajetória de queda é de pelo menos 3 pontos do PIB (R$ 350 bilhões) — e precisa ser feito ao longo dos anos”, escreveu Mansueto.
O comprometimento de Lula com a responsabilidade fiscal será testado pela resposta a duas questões. A primeira é desvincular despesas de receitas. Os gastos com saúde e educação crescem seguindo a arrecadação. Por óbvio, a solução não é congelar as verbas de duas áreas vitais, mas adotar um novo método para corrigi-las. A segunda questão é desvincular benefícios previdenciários do salário mínimo, cujo reajuste pode superar a inflação. Ambos os mecanismos de correção inviabilizam qualquer ajuste fiscal. Nas palavras certeiras de Mansueto: “Nos demais países, é normal haver despesas que crescem automaticamente com o aumento da receita? Não. É normal que benefícios sociais tenham o mesmo valor que o piso da Previdência? Não. Teremos de rever essas regras”.