O grande problema de Lula é o que o governo faz e não a falta de comunicação e articulação política
Por José Fucs / O ESTADÃO DE SP
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva acabou de completar 500 dias no Palácio do Planalto e ultrapassar a marca de um terço de seu terceiro mandato. Mas, embora ainda lhe reste pouco mais de dois anos e meio de governo, Lula enfrenta um desgaste precoce que parecia improvável quando ele tomou posse, liderando o frentão “pela democracia” formado para barrar a reeleição do ex-presidente Jair Bolsonaro, em 2022.
Em queda livre nas pesquisas de popularidade, sofrendo derrotas em série no Congresso e falando para o vento em atos esvaziados nas ruas, Lula está vivendo uma espécie de “inferno astral” que parece não ter fim. Apesar de fazer de conta que não sente o golpe, seus auxiliares andam dizendo por aí que o “mau humor” do presidente, recorrente antes da cirurgia no quadril, “voltou com força” nos últimos tempos – e não por causa de problemas de saúde.
Em princípio, os reveses de Lula no Legislativo deveriam ser vistos como algo natural, que faz parte da trajetória de qualquer governo, em maior ou menor grau, em qualquer lugar do mundo. As oscilações nas pesquisas de opinião e seu mau humor com tudo isso, também. O problema é que a leitura que o presidente faz dos acontecimentos parece ter pouco ou nada a ver com o que está realmente ocorrendo no País, tornando mais difícil a reversão do quadro desfavorável e colocando em xeque o projeto de sua reeleição em 2026, como já detectaram algumas sondagens.
Para Lula e seus fiéis escudeiros, tudo que está acontecendo se deve a um “problema de comunicação” e à “falta de articulação política” no Congresso e não ao perfil que o governo está assumindo. Eles também responsabilizam a imprensa pelo (suposto) “pessimismo” que estaria recheando o noticiário econômico e contagiando a percepção popular. Mesmo o fiasco da manifestação de 1º de maio, que reuniu menos de duas mil pessoas no estacionamento do estádio do Corinthians, na zona leste de São Paulo, Lula joga na conta de terceiros – dos sindicatos, no caso – responsáveis pela organização do evento.
Sinal de alerta
Em vez de encarar os resultados negativos das pesquisas como um sinal de alerta sobre os rumos do governo, Lula prefere minimizá-los. Afirma que é “normal” um presidente em “início de mandato” ter uma avaliação negativa, porque as medidas implementadas até agora ainda não surtiram os efeitos esperados. Convencido de que sua gestão deveria ser glorificada pelos brasileiros, ele dá caneladas e cotoveladas em ministros e parlamentares do PT e cobra maior empenho dos “companheiros” na divulgação das “entregas” governamentais.
Na tentativa de melhorar a imagem do governo, Lula convocou até o marqueteiro de campanha, Sidônio Palmeira, para dar seus pitacos na comunicação oficial. Por orientação de Sidônio, que faz coro com o presidente ao dizer que “o governo é melhor do que a percepção popular”, o Planalto lançou uma campanha publicitária com o mote “fé no Brasil”, para tentar impulsionar o que considera como uma “agenda positiva” para o País. Lula também passou a fazer mais referências a deus e à família em suas falas, buscando maior identificação com a população, principalmente junto ao eleitorado evangélico, que, em sua maioria, de acordo com as pesquisas, votou em Bolsonaro no último pleito.
Mais ou menos na mesma linha, Lula e seus auxiliares também têm atribuído ao Congresso a responsabilidade pelas dificuldades que o governo está enfrentando para implementar sua agenda, como se a independência dos Poderes fosse uma quimera e o Legislativo tivesse de atuar como braço auxiliar do Planalto na gestão do País. Segundo eles, o problema é o “conservadorismo” do Congresso e não a desconexão dos projetos do governo com uma parcela significativa da sociedade, que os parlamentares, em tese, representam.
Neste cenário, não é de estranhar que o presidente esteja avaliando, de acordo com o noticiário político, a possível troca de seu líder no Congresso, o senador Randolfe Rodrigues, que sequer tem partido no momento. Apesar de Lula negar, pipocam também informações de que a troca de seu interlocutor com os parlamentares – o secretário de Relações Institucionais, Alexandre Padilha, desafeto do presidente da Câmara, Arthur Lira – está no radar, para evitar novas derrotas no plenário sem alterar seu plano de voo.
A questão é que os grandes problemas do governo não são de forma, mas de conteúdo. É a agenda embolorada e antiocidental de Lula, além de seu discurso rancoroso e revanchista, que explicam, em boa medida, sua perda de popularidade e as derrotas do governo no Congresso e não eventuais falhas na comunicação e na articulação política. Em outras palavras, o que derruba Lula é o próprio governo. São as medidas que ele está implementando e as propostas que defende e pretende levar adiante, com o apoio de sua turma.
Na economia, as “entregas” do governo, incluem a gastança sem lastro, o inchaço da máquina administrativa, a fúria arrecadatória, a resistência ao corte de despesas e o crescimento acelerado da dívida pública. Incluem também a tentativa de interferir na política monetária, baixando os juros a fórceps, e até de reverter a autonomia do Banco Central, para a instituição servir aos interesses políticos de curto prazo do governo e viabilizar seu projeto de poder.
Ingerência política
Fazem parte da lista, ainda, a ingerência política nas estatais e as tentativas de nomear o ex-ministro Guido Mantega para a presidência da Vale e de revogar a privatização da Eletrobrás e o novo marco do saneamento, além da nomeação de correligionários para os conselhos de administração das empresas públicas, da obsessão em promover a regulação dos aplicativos de transporte e de entrega, mesmo contra a vontade da maioria dos empreendedores que atuam na área, e da tentativa de revogar a desoneração da folha de pagamento depois de o Congresso derrubar o veto de Lula à prorrogação da medida, aprovada dias antes pela própria instituição.
Na área das relações exteriores, destacam-se o apoio ao presidente da Rússia, Vladimir Putin, na guerra contra a Ucrânia, o apoio (ainda que velado) ao Hamas e as posições anti-Israel, que levaram o Brasil a votar contra uma moção da OMS (Organização Mundial de Saúde) em favor da libertação dos reféns israelenses mantidos pelo grupo terrorista pró-Irã, e as “passadas de pano” para o regime cubano e o ditador venezuelano Nicolás Maduro.
A isso se pode acrescentar a tentativa de impor a regulação das fake news, a má gestão da epidemia de dengue, que já levou cerca de quatro mil vidas e atingiu 4 milhões de pessoas desde a posse de Lula; o descarte de 6,4 milhões de doses de vacinas contra covid pelo Ministério da Saúde, com valor calculado em R$ 227 milhões; o recorde de queimadas no primeiro quadrimestre do ano, com 17 mil focos de incêndios no País; a atuação de Lula e de sua mulher Janja da Silva na crise climática do Rio Grande do Sul; o veto à saidinha de presos, depois derrubado pelo Congresso; e a imposição de sigilo a informações sobre a agenda de Janja e até sobre as fugas de presos em 2023.
Bonde do PT
Mesmo com tal retrospecto, Lula diz que “sabe o que está fazendo”, ancorado na percepção de que o receituário adotado em seu segundo mandato e aprofundado nos mandatos de Dilma foi um sucesso retumbante. Contra todas as evidências, ele acha que o bonde do PT não descarrilhou por causa das políticas equivocadas implementadas nas gestões anteriores do partido, mas em razão dos efeitos negativos gerados pela Lava Jato e pelo “golpe” desferido contra sua pupila. Por isso, em vez de ajustar a orientação do governo, Lula está dobrando a aposta na velha agenda, acreditando que vai acabar gerando frutos e ele é que vai rir por último.
Embora sua eleição tenha se dado graças à “frente ampla” que se formou contra Bolsonaro, que atraiu o centro e até parcelas da centro-direita para sua órbita, ainda que de “nariz tampado”, o presidente se recusa a admitir que sua vitória não representou um salvo-conduto para ele retomar a agenda do PT, que jogou o País na maior recessão de que se tem notícia em todos os tempos, em meio à descoberta de escândalos de corrupção em escala industrial envolvendo governos petistas.
Desde o princípio de sua administração, Lula vem praticamente ignorando as ideias e os projetos das forças alienígenas que viabilizaram sua volta ao Planalto, acreditando – de forma ingênua, para muitos analistas – que, desta vez, seria diferente, que, com a diversidade das forças políticas que lhe deram apoio, ele não tentaria reeditar a agenda fracassada do passado. Fica difícil, quase impossível, assim, Lula manter esse pessoal ao seu lado, mesmo com uma dose cavalar de propaganda oficial.
Conselheiros
Segundo o noticiário, Lula passou até a ouvir mais pessoas de fora do governo nas últimas semanas, para tentar superar os obstáculos que surgiram pelo caminho e “reencontrar o eixo”, como afirmou o ex-deputado petista Eduardo Suplicy, ao sumir por três dias em plena campanha para o governo de São Paulo, em 1986. Só que a lista de “conselheiros” inclui apenas integrantes de seus primeiros mandatos e do PT, o que não contribui em nada para oxigenar o governo e só reforça a pauta do partido que Lula está tentando implementar.
O grupo reúne o ex-deputado e ex-presidente do PT José Dirceu e o ex-presidente da Câmara João Paulo Cunha, que “caíram em desgraça” na esteira do mensalão. Também fazem parte do time o presidente da Fundação Perseu Abramo e companheiro de Lula desde os tempos de sindicalismo, Paulo Okamoto, o ex-presidente da Petrobras José Sérgio Gabrielli, condenado pelo TCU (Tribunal de Contas da União) pela compra da refinaria de Pasadena, nos Estados Unidos, e o ex-presidente do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) Luciano Coutinho, que tinha a missão de viabilizar o projeto dos “campeões nacionais”, com a concessão de empréstimos bilionários a juros de pai para filho para os “eleitos”, além de auxiliares mais próximos de Lula, como Fernando Haddad, ministro da Fazenda, e Celso Amorim, assessor especial para Assuntos Internacionais.
Acorrentado a suas crenças políticas e ideológicas, o presidente parece dominado por um mecanismo de autoengano que o impede de enxergar além da bolha que o envolve. As medidas e propostas de seu governo podem até atender às demandas da base do PT e de seus aliados, mas afastam, provavelmente em definitivo, o centro e os setores da centro-direita que foram decisivos para sua eleição em 2022. No fim das contas, o que Lula acha que é o seu trunfo é, na verdade, a causa de seu infortúnio – no Congresso, nas pesquisas e nas ruas. Insistir nisso só vai piorar as coisas, para ele e para o País.
É repórter especial do Estadão. Jornalista desde 1983, foi repórter especial e editor de Economia da revista Época, editor-chefe da revista Pequenas Empresas & Grandes Negócios, editor-executivo da Exame e repórter do Estadão, da Gazeta Mercantil e da Folha. Leia publicações anteriores a 18/4/23 em www.estadao.com.br/politica/blog-do-fucs/