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Alemanha retém blindado comprado pelo Exército brasileiro e cria novo desafio para o governo Lula

Por Marcelo Godoy / o estadão de sp

 

 

 

Alemanha decidiu reter no porto de Hamburgo o primeiro blindado Centauro II-BR que seria embarcado para o Brasil, onde passaria por testes no Centro de Avaliações do Exército (CAEx), no Rio. A aduana alemã justificou a medida alegando a falta de uma guia de transporte do Ministério Federal de Assuntos Econômicos e Ação Climática, o BMWK (sigla alemã para Bundesministerium für Wirtschaft und Klimaschutz).

 

Esta não é a primeira vez que o governo do primeiro-ministro Olaf Scholz cria embaraços ao Brasil na área da Defesa. Em 2023, após decisão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de vetar o envio de munições à Ucrânia, Berlim, por meio de seu Escritório Governamental de Controle de Exportação (BAFA, na sigla alemã), órgão subordinado ao BMWK, embargou a venda de blindados Guarani, fabricados no Brasil pela IDV (Iveco Defense Vehicles), para as Filipinas. À coluna, a sede da IDV, em Bolzano (Itália), afirmou que, desta vez, “não há embargo”, mas, em razão da confidencialidade contratual, não poderia se manifestar sobre o caso.

 

Fabricado pelos italianos do Consórcio Iveco-OTO Melara (CIO), o Centauro II-BR é o que o Exército chama de Veículo Blindado de Combate de Cavalaria (VBC Cav). Sua compra faz parte do projeto de modernização das forças blindadas do País. O Brasil assinou em 22 de dezembro de 2022 um contrato de € 900 milhões, que previa a entrega de duas unidades para a realização de testes antes da conclusão da compra de outros 96 VBC CAV, conjunto que será o mais moderno e potente de seu tipo em operação na América do Sul.

 

Uma cláusula contratual afirma que os testes do produto devem ser concluídos em dois anos. Se a fabricante não for capaz de aprovar seu produto no prazo, ele é desclassificado em favor do segundo colocado, um blindado canadense. Além dos testes do primeiro blindado no centro de provas do CAEx, o Exército deve receber em setembro a segunda unidade do Centauro II-BR, que seria enviado ao Centro de Instrução de Blindados, no Rio Grande do Sul, onde devem ser concluídos as provas até 22 de dezembro.

 

À coluna, o Exército informou que “a avaliação das amostras da VBC CAV segue um planejamento previsto em contrato celebrado entre as partes, que possui flexibilidade para possíveis intercorrências e fatos novos ao longo do processo, que transcorre em um período relativamente grande de tempo”. Ou seja, por enquanto, está tudo dentro do prazo. E não haveria risco para o contrato do Centauro II-BR. A nota oficial do Exército conclui tratando dos riscos de atraso do contrato e suas consequências jurídicas. Ela afirma: “Possíveis ajustes serão tratados e formalizados, à luz da legislação em vigor.”

 

O embarque do primeiro Centauro II-BR para o Brasil estava previsto para o dia 20 de junho. A primeira informação sobre “dificuldades em Hamburgo” foi publicada pela revista Tecnologia & Defesa. A coluna teve acesso na sexta-feira, dia 21, à carta enviada ao Exército brasileiro pela empresa italiana no dia 20. Ela afirma que o embarque foi impedido por “problemas ocorridos durante as operações alfandegárias no porto de Hamburgo”. O blindado havia saído da sede da IDV, em Bolzano, norte da Itália, em 24 de maio.

 

Em Bolzano haviam sido feitos os primeiros testes da blindado – uma equipe do CAEx fora enviada à Itália para acompanhar o trabalho. Após ser aprovado, o veículo recebeu as cores que deve ter ao ser incorporado ao Exército Brasileiro. De acordo com a carta da Iveco ao Exército, o itinerário da viagem incluía um trecho terrestre, a cargo da transportadora TWL, até Hamburgo, onde o Centauro seria embarcado em um navio pela transportadora Grimaldi, com destino ao Rio.

 

No dia 28 de maio, o blindado chegou ao porto alemão. Foi aí que as autoridades alemãs entraram em campo. Segundo a carta, as autoridades alfandegárias verificaram que o despachante não havia solicitado a autorização de transporte do veículo pelo país. O pedido foi feito ao BMWK, em 31 de maio. Os italianos informaram ao Exército até o número de protocolo do pedido: E-KWG-BRA2024000366-GEN.

 

Ainda de acordo com a carta da Iveco, o departamento de investigação aduaneira da Alemanha concordou em liberar o embarque “assim que o BMWK emitir a autorização para o transporte do blindado”. A estimativa da empresa é que a autorização necessária para o envio do Centauro seja concedida até o fim do mês ou, no mais tardar, no começo de julho. Tudo, portanto, não passaria de simples problema burocrático. Em setembro, o segundo Centauro será despachado para o Brasil. Mas por Antuérpia, na Bélgica.

 

Suspeita-se em Brasília que o imbróglio não seja só o resultado do descuido de um despachante aduaneiro contratado pela Iveco. É que a Alemanha já criou outros obstáculos quando se trata de negócios de produtos da base industrial de defesa que contam com itens de origem alemã. Assim foi no caso do contrato da mesma Iveco para a venda de 28 blindados Guarani, produzidos pela empresa em sua fábrica em Minas, para as Filipinas. Durante oito meses, Berlim, alegando restrições relacionadas ao respeito aos direitos humanos no país asiático, embargou a venda do blindado, que conta com cinco itens alemães.

 

A decisão alemã aconteceu ao mesmo tempo em que o Brasil assumia uma posição contrária ao apoio ao esforço de guerra da Ucrânia, contra a ação imperialista levada à cabo pelo governo russo de Vladimir Putin. Os alemães queriam que o Brasil repassasse aos ucranianos munições do carro de combate Leopard 1A5 BR e dos blindados com canhões antiaéreos Gepard (antiaérea), mas o governo Lula barrou a venda à Kiev. Também vetou, em 2023, a compra de 400 Guaranis, do modelo ambulância, pela Ucrânia.

 

No caso do Centauro, o governo de Berlim teve de autorizar a venda do Consórcio CIO ao Brasil em razão da presença nos veículos de componentes de origem alemã, como a transmissão do motor. É justamente a sombra de possíveis questões geopolíticas que agora voltam à tona quando a aduana em Hamburgo impede o embarque do primeiro Centauro II-BR para o Brasil, levantando questões, inclusive, que afetam o futuro das forças blindados do Exército.

 

É que neste ano deve ser iniciado o processo de substituição dos carros de combate sobre lagartas Leopard 1A5 BR, assim a Força Terrestre deve adotar viaturas blindadas de combate fuzileiros (VBC Fuz), em substituição às Viaturas Blindadas de Transporte de Pessoal (VBTC) M-113-BR. Ao todo, o Exército planeja adquirir 78 viaturas de combate fuzileiros e 65 carros de combate de até 50 toneladas, ou seja, tanques médios. Provavelmente, a escolha do futuro modelo deve recair sobre modelos que utilizem a mesma torre do Centauro II-BR, equipada com o canhão OTO Melara de 120 mm.

 

O Ministério da Defesa brasileiro espera que episódio em Hamburgo tudo não passe de um mal-entendido, causado pelo descuido de um despachante. Mas é bom ficar de olho aberto. Quais interesses podem estar por trás de uma manobra para afetar o contrato bilionário do Centauro IIBR? O mercado internacional de armas está aquecido. Os gastos militares mundiais cresceram pelo nono ano consecutivo e atingiram US$ 2,4 trilhões. Há escassez de materiais e filas de espera para a aquisição de armamentos.

 

Na semana passada, a Alemanha assinou um contrato de € 8,5 bilhões com a Rheinmetall, fabricante de munições, o maior da história da empresa para a fabricação de munição de artilharia, principalmente de calibre 155 mm. O contexto geopolítico em que o contrato com o consórcio Iveco-OTTO Melara foi assinado está mudando. Líderes políticos sempre devem contar com a ausência de guerra até o momento em que a paz seja possível. E estar preparados para esse dia, um horizonte que, cada vez, parece mais próximo.

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Análise por Marcelo Godoy

Repórter especial do Estadão e escritor. É autor do livro A Casa da Vovó, prêmios Jabuti (2015) e Sérgio Buarque de Holanda, da Biblioteca Nacional (2015). É jornalista formado pela Casper Líbero.

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