Organização social empoderada no governo Bolsonaro vira ‘faz-tudo’ na gestão Lula
Por Vinícius Valfré e Julia Affonso / O ESTADÃO DE SP
BRASÍLIA - O ministro das Comunicações, Juscelino Filho, atua para dar mais espaço dentro do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) a uma organização social que foi empoderada na gestão de Jair Bolsonaro (PL). A entidade virou uma “faz-tudo” na área de conectividade por meio de um contrato de R$ 2,7 bilhões que não exige transparência plena dos gastos e não é fiscalizado pelo Tribunal de Contas da União (TCU).
A Rede Nacional de Pesquisa (RNP) é uma entidade privada e sem fins lucrativos usada pelas Comunicações e por outros dois ministérios para executar serviços com mais agilidade. A organização recebe recursos públicos e não é obrigada a fazer licitações nem a publicar os contratos que fecha com seus fornecedores.
O Palácio do Planalto, o ministério das Comunicações e o ex-chefe da pasta Fábio Faria (PP-AL) não comentaram. O diretor-geral da RNP, Nelson Simões, afirmou que “o que a RNP tem feito cada vez mais é construir soluções para outras políticas públicas”.
O Ministério da Educação informou que o controle dos resultados da organização social “é acompanhado e avaliado semestralmente por comissão externa de especialistas. Segundo o MEC, as contas da RNP foram aprovadas por todas as auditorias externas contratadas pelo Conselho de Administração da organização. (Leia mais abaixo)
Ela ganhou, na área de conectividade, um papel similar ao de empresas públicas e autarquias que fazem obras e compram equipamentos para prefeituras, como a Codevasf, controlada pelo Centrão e marcada por escândalos. Entre representantes do Congresso e da Telebrás, a RNP é apelidada de “Codevasf da conectividade”, em referência à capilaridade e à pouca fiscalização dos órgãos de controle.
No governo de Jair Bolsonaro (PL), a RNP teve atribuições ampliadas e se tornou a responsável pelos principais projetos do então ministro das Comunicações, Fábio Faria. Sob Lula, continua em alta. A pasta de Juscelino Filho tentou dar à RNP um papel semelhante ao do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDES) para que a organização pudesse administrar R$ 500 milhões em benefícios fiscais do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust), vinculado às Comunicações.
O Estadão teve acesso à proposta antes da votação no Fust e pediu informações à pasta. Em resposta, o ministério informou somente que o conselho decidiu “não dar continuidade à alternativa” de transformar a organização social em “agente financeiro” dos recursos.
RNP levou Starlink, de Elon Musk, a Lula
A RNP também serviu como porta de entrada da Starlink, do empresário Elon Musk, no governo federal. E Lula, sem saber, virou garoto-propaganda após testar e aprovar a qualidade da tecnologia do sul-africano.
A pedido das Comunicações, a RNP instalou a internet por satélite do bilionário no Navio Hospital Escola Abaré, usado para telemedicina na Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa). Em agosto, Lula visitou a embarcação com Juscelino e outros ministros, ouviu pacientes e saiu elogiando o funcionamento do serviço.
A foto de Lula em frente a um monitor com internet oferecida pela Starlink foi interpretada por executivos do mercado de satélites como um aval presidencial à adoção da tecnologia. Como já mostrou o Estadão, o Ministério das Comunicações prepara uma licitação de internet para praças públicas que só a tecnologia de Musk é capaz de atender e o MEC voltou atrás em uma decisão que facilitava a entrada da Starlink em milhares de escolas públicas.
O aval de Lula à tecnologia de Elon Musk é inusitado. O empresário recebeu a autorização para atuar no Brasil em janeiro de 2022, no governo Bolsonaro, e chegou a ser recebido pelo ex-presidente, no interior de São Paulo, durante o período pré-eleitoral. Desde que comprou o Twitter, o bilionário passou a ser criticado como uma referência de liberdade de expressão para a extrema-direita por ter tornado a rede social mais tolerante a discursos considerados de ódio.
RNP recebe recursos de três ministérios
A RNP foi criada em 1989 pelo então Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) e classificada como organização social em 2002. É uma entidade privada e sem fins lucrativos. O primeiro contrato do governo federal com a RNP, por meio do Ministério da Ciência e Tecnologia, foi fechado em 2002.
Em 2021, o acordo foi renovado pela quarta vez e será válido até 2030, com transferência de recursos também dos ministérios da Educação e das Comunicações. O acordo transfere, anualmente, R$ 270 milhões à entidade, que ainda recebe por serviços prestados a outros órgãos do governo.
O vínculo original da RNP com o Ministério da Ciência e Tecnologia foi estabelecido para criar uma uma espécie de “internet avançada” para as instituições de ensino superior do Brasil, em uma rede que permite envio e transferência rápidas e seguras de dados necessários a pesquisas, como computação de alto desempenho, acesso a imagens de telescópios do exterior e download de informações de satélites.
Em setembro, a RNP conseguiu um outro espaço estratégico no governo petista. A organização social foi incluída no grupo montado pelo presidente Lula, via decreto, para instituir a Estratégia Nacional de Escolas Conectadas (Enec), ao lado de órgãos como Anatel, FNDE e BNDES. Com o plano, o governo pretende destinar R$ 6,6 bilhões para conectar escolas públicas à internet com o carimbo do Novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). A Enec é coordenada pelo MEC, de Camilo Santana.
No Ministério das Comunicações, o escopo da RNP foi ampliado durante a gestão do ex-ministro Fábio Faria, no governo Jair Bolsonaro. A organização foi chamada para executar o Programa Internet Brasil, de entrega gratuita de chips de banda larga para alunos da rede pública, e também para distribuir quilômetros de fibra óptica pelo Rio Amazonas em obra que foi chamada de “prova de conceito” pela organização.
O diretor-geral da RNP, Nelson Simões, está no cargo há 20 anos. “O que a RNP tem feito cada vez mais é construir soluções para outras políticas públicas. Foi a RNP que implementou a Infovia 00. Era uma prova de conceito de como colocar um cabo dentro do Rio Amazonas e de como construir um modelo de sustentação que pudesse ser feito junto com o setor privado”, disse Nelson Simões ao Estadão, em entrevista.
Medidas de transparência são precárias
Ao contrário do que ocorre com compras governamentais diretas, os gastos da RNP com a verba pública do contrato de gestão não constam do Portal da Transparência do governo federal. Os pagamentos feitos pela entidade também não são registrados no Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (Siafi), principal instrumento de controle da execução orçamentária.
Para entender como a RNP gasta a verba pública, é preciso buscar informações em contratos e relatórios de gestão publicados no site da entidade. O portal, contudo, não permite aos cidadãos um monitoramento detalhado e de fácil acesso a toda movimentação de recursos e de contratações como os sistemas da administração pública.
A RNP não é obrigada a entregar ao Ministério da Ciência e Tecnologia, pasta que lidera o contrato de gestão, a relação de empresas contratadas com recursos públicos. Segundo o ministério, os resultados obtidos pela entidade são apresentados semestralmente em um Relatório de Gestão. O documento é avaliado por comissão vinculada à pasta que supervisiona os gastos, mas não tem a responsabilidade de fiscalizar a regularidade das despesas e das contratações.
Ao Estadão, Nelson Simões afirmou que o relatório de gestão é um documento “muito importante” para a RNP. O diretor-geral explica que a rede é acompanhada e avaliada semestralmente.
“Esse documento contém o conjunto de informações anuais, não só o balanço aprovado no conselho e auditado externamente, por empresa de auditoria, mas também o relatório dos indicadores do contrato de gestão e das metas que foram alcançadas, as justificativas dos resultados”, disse. “O site não está muito amigável, não, eu reconheço.”
Governo tem representantes no Conselho de Administração
O estatuto da RNP permite a reeleição para o mesmo posto indefinidamente, basta que a maioria dos integrantes do Conselho de Administração concorde com as seguidas reconduções. Os ministérios da Ciência e Tecnologia, da Educação e das Comunicações mantêm cinco representantes no colegiado. O conselho é responsável por “fazer cumprir o objetivo social da organização, aprovar questões relacionadas a recursos humanos e examinar contas, demonstrações financeiras e documentos da organização”.
Em outubro, o diretor do Departamento de Investimento e Inovação do Ministério das Comunicações, Pedro Lucas da Cruz Pereira Araújo, que integra o Conselho de Administração da RNP, foi questionado sobre a atuação da entidade durante audiência pública na Câmara.
“Não há licitação, claro, licitação é de natureza pública, mas faz chamamentos públicos. Ela se submete aos mesmos requisitos adotados em contratações executadas diretamente pelo setor público. Inclusive, acompanhamento de órgão de controle.”
Araújo é um dos remanescentes da gestão de Fábio Faria no ministério. Como mostrou o Estadão, Juscelino Filho, filiado ao União Brasil, manteve na pasta o quadro de pessoal que trabalhou para seu antecessor, mudando-os apenas de cargos internamente. Faria integra o partido Progressistas, sigla do presidente da Câmara, Arthur Lira.
Na mesma audiência, a diretora de Popularização da Ciência, Tecnologia e Educação Científica, do MCTI, Juana Nunes Pereira, afirmou ao deputado Aureo Ribeiro (Solidariedade-RJ) que a pasta acompanha e aprova os gastos da entidade. “O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação tem um contrato de gestão com a RNP”, afirmou, porém, sem detalhar métodos de fiscalização e controle das despesas. “O contrato de gestão está baseado na rede RNP e faz a rede com as universidades, com institutos federais.”
Procurados, o Palácio do Planalto, o ex-ministro Fábio Faria e o Ministério das Comunicações não comentaram.
O Ministério da Educação afirmou ao Estadão que a RNP foi incluída na Enec pois “buscou-se compor um Comitê Executivo com diversos atores com programas e iniciativas relacionadas ao tema de conectividade na educação, além de expertise no tema de conectividade”. Os integrantes do grupo, segundo a pasta, vão apoiar “políticas públicas de acesso à internet de qualidade, estabelecendo metas para os objetivos do Escolas Conectadas e definindo e tornando públicos parâmetros técnicos de conectividade”.
“A Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP) é um dos 10 membros do comitê porque desenha, desenvolve e opera redes para educação e pesquisa desde 1992, quando surgiu a Internet no Brasil”, registrou o MEC.
“As estratégias, os modelos e os conhecimentos que a RNP aplica na inclusão e transformação digital em âmbito da educação superior e pesquisa no país são muito importantes para contribuir com o mesmo objetivo na educação básica.”
O MEC também afirmou que, desde 2019, a própria pasta, o Ministério das Comunicações e a RNP cooperam “em projetos e iniciativas piloto para experimentar tecnologias e definir parâmetros de conectividade de escolas, interna e externa, implementação de tecnologia na educação, segurança e gestão sustentável desses ambientes, em conjunto com redes de ensino municipais e estaduais (Projeto Piloto da Política de Inovação Educação Conectada)”. Segundo a pasta, os resultados são “relevantes” para o ministério e também para os “entes federativos que se articulam agora via Enec”.
Questionado sobre a transparência de despesas e ações da RNP, o Ministério da Educação informou que é integrante do Conselho de Administração da RNP. O MEC acrescentou que o conselho “exerce as funções de direção, administração e fiscalização, definindo e aprovando prestação de contas por meio de auditorias independentes, incluindo, demonstrações financeiras, obrigações contratuais, políticas e aderência de despesas ao Contrato de Gestão”.
“O controle dos resultados é acompanhado e avaliado semestralmente por comissão externa de especialistas (Comissão de Acompanhamento e Avaliação do Contrato de Gestão - CAA)”, registrou o MEC.
A pasta declarou também que integra o Conselho de Administração (CADM) e a Comissão de Acompanhamento e Avaliação (CAA) da RNP desde 2002. “Todas as auditorias externas contratadas pelo CADM aprovaram as contas da RNP até 2022; as auditorias governamentais do TCU em 2014 e CGU em 2019 também resultaram em aprovações e recomendações em atendimento. A CAA concluiu avaliações sobre o desempenho do último ciclo 2011-2020 com nota geral de 9,9; a mesma pontuação foi atribuída aos resultados alcançados em 2022″, pontuou o MEC.