A Chance de discutir os pisos constitucionais
Por Notas & Informações / o estadão de sp
O Ministério da Fazenda pediu aval do Tribunal de Contas da União (TCU) para ser liberado da obrigação de cumprir os pisos constitucionais de saúde e educação neste ano. Extinta durante a vigência do teto de gastos, a regra voltou a valer no momento em que o antigo dispositivo foi substituído pelo novo arcabouço fiscal e criou uma fatura de R$ 20 bilhões para a União nos últimos meses do ano.
A equipe econômica atribui o imbróglio à antecipação do envio e aprovação da proposta do arcabouço ao Congresso. Assim, de uma hora para outra, após conseguir enterrar o dispositivo que tanto criticou, o governo acabou por ter de lidar com a ressurreição dos pisos, reajustados apenas pela variação da inflação durante a curta vida do teto de gastos.
Se foi esquecimento ou barbeiragem, já não importa. O fato é que o governo se viu obrigado a encontrar espaço no Orçamento para cumprir os dispositivos constitucionais, segundo os quais os gastos com saúde precisam corresponder a 15% da Receita Corrente Líquida (RCL), enquanto as despesas com educação devem equivaler a 18% da Receita Líquida de Impostos (RLI).
A fatura de R$ 20 bilhões corresponde apenas ao período entre setembro e dezembro deste ano, uma vez que o arcabouço passou a valer no dia 30 de agosto. Longe de ser trivial, é um valor que tem o potencial de piorar ainda mais o déficit primário, sobretudo em um ano em que a arrecadação tem caído.
Tampouco é uma conta fácil de acomodar do lado das despesas, ainda mais em tão curto espaço de tempo. Na consulta à Corte de Contas, a Fazenda alega que obrigar a aplicar os pisos neste momento seria uma contradição ao princípio da eficiência administrativa e penalizaria a boa gestão pública e o planejamento fiscal. Por isso, o governo quer voltar a cumprir a regra integralmente apenas em 2024.
A consulta ao TCU expõe o tamanho do desafio político que o governo tem a enfrentar no Congresso. Por ser um tema constitucional, a revisão dos pisos obviamente requer uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC). A tentativa de resolver o problema por meio de um artigo incluído de última hora em um projeto de lei complementar, capitaneada pelo líder do PT na Casa, Zeca Dirceu (PR), não parece ser viável e poderia ser facilmente questionada no Supremo Tribunal Federal (STF).
O governo, que já sinalizou que enviaria uma PEC sobre o tema no passado recente, não parece querer enfrentar esse embate neste momento. Por tratar de uma pauta cara para a esquerda, uma proposta que diminuísse os recursos destinados à saúde e à educação não contaria nem mesmo com o apoio da base aliada.
Tem razão o governo ao alegar, ao TCU, que a necessidade de cumprir o mínimo constitucional levaria a uma utilização improvisada de recursos sem qualquer planejamento. Encontrar bons projetos vinculados a políticas públicas a serem executados em tão curto espaço de tempo não parece razoável nem factível.
Com o arcabouço, o governo perdeu a oportunidade de encaminhar uma solução definitiva para o problema dos pisos constitucionais de saúde e educação. Agora que a conta chegou, dependerá da boa vontade do TCU para não ser enquadrado pelo Congresso.
Eis, portanto, uma excelente oportunidade para o governo começar a enfrentar, com racionalidade, a questão da qualidade do gasto público. Afinal, apesar da boa intenção dos parlamentares, a imposição dos pisos foi incapaz de revolucionar a qualidade da saúde e da educação brasileiras.
Os pisos, na prática, têm gerado um empoçamento de recursos do Orçamento. É um fenômeno recorrente, com o qual diferentes governos lidam sempre da mesma forma: remanejamentos orçamentários que acabam por salvar outras áreas da penúria, sobretudo gastos discricionários, e que impedem a paralisia da máquina pública.
Reconhecer o problema não significa dizer que haja sobra de recursos para a saúde e a educação, mas indica que as duas áreas possuem mais recursos do que o Estado tem capacidade para gastar. Mostra, também, que os desafios do setor público nem sempre se resolvem com mais dinheiro, mas certamente demandam mais eficiência.