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Declarações de Lula sobre TPI enfraquecem trajetória brasileira por defesa de direitos humanos e cooperação internacional, dizem especialistas

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— São Paulo / O GLOBO

 

As declarações críticas do presidente Luiz Inácio Lula da Silva sobre o Tribunal Penal Internacional (TPI) durante a cúpula do G20, na Índia, pegaram de surpresa juristas e ativistas de direitos humanos, que consideraram a retórica do presidente avessa às linhas de política externa brasileira, incluindo as adotadas durante os governos anteriores do PT. De acordo com especialistas ouvidos pelo GLOBO, as falas do presidente enfraquecem uma longa trajetória pela consolidação da defesa dos direitos humanos e da cooperação internacional.

 

— Em termos de política externa, o Brasil sempre apostou por ampliar a universalidade dos tratados sobre direitos humanos, para que os países que não ratificaram os acordos o façam, em lugar de condicionar sua permanência por meio de uma reciprocidade antiquada. — afirmou Daniel Cerqueira, diretor de Programa da Due Process of Law Foundation (DPLF), organização de direitos humanos com sede em Washington. — Gostaria de pensar que isso foi uma falta de inspiração ou um deslize retórico do Lula, e não corresponda a uma política de governo, porque seria uma afronta à tradição diplomática brasileira desde a redemocratização.

A polêmica envolvendo o TPI começou no sábado, quando o presidente afirmou, em entrevista a uma TV indiana, que o presidente Vladimir Putin, da Rússia, não seria preso se viesse ao Brasil durante a cúpula do G20 que será sediada no Rio de Janeiro, embora o líder russo seja alvo de um mandado de prisão expedido pela corte com sede em Haia.

 

— O que eu posso dizer para você é que se eu for presidente do Brasil e ele for para o Brasil não há porque ele ser preso, ele não será preso — disse.

Após a repercussão da fala sobre Putin, Lula recuou durante uma coletiva de imprensa na manhã desta segunda-feira (noite de domingo em Brasília), ao afirmar que uma eventual prisão do presidente russo em solo brasileiro seria uma decisão do Judiciário, sem interferências do Executivo ou do Legislativo. No entanto, em meio ao “recall”, o presidente indicou ter dúvidas quanto à participação brasileira no organismo.

— Quero estudar muito essa questão desse Tribunal Penal, porque os EUA não são signatários dele. A Rússia não é signatária dele. Então eu quero saber por que o Brasil virou signatário de um tribunal que os EUA não aceitam. Por que nós somos inferiores e temos que aceitar uma coisa, sabe? — disse Lula, respondendo a jornalistas em uma coletiva na manhã desta segunda em Nova Délhi (noite de domingo em Brasília). — Eu não sei [se tiraria o Brasil do TPI]. Estou falando que eu vou só estudar. Eu quero saber por que que nós entramos. A Índia não entrou, a China não entrou, os EUA não entraram, a Rússia não entrou e eu vou saber por que o Brasil entrou.

 

De acordo com Cerqueira, a declaração do presidente tem um componente ainda mais surpreendente pelo fato do respeito à jurisdição do TPI ter sido incorporada à Constituição Federal ainda o primeiro mandato de Lula, em 2004 — embora a adesão ao Estatuto de Roma, em 1998, e a ratificação pelo Congresso, em 2002, tenha ocorrido no governo Fernando Henrique Cardoso.

 

— O TPI é uma conquista dos Direitos Humanos, resultado de uma demanda histórica relacionada aos grandes conflitos, muitas vezes ligadas aos efeitos do totalitarismo, e à necessidade de responsabilização. Esse tipo de questionamento vindo do governo brasileiro, que tem figuras como Silvio Almeida na pasta dos direitos humanos, com trajetória conhecida e reconhecida no tema, é muito preocupante, principalmente da maneira como fez o presidente. Pareceu-me uma precipitação, para dizer o mínimo, em relação a tema de enorme relevância — afirmou o professor Luiz Fernando Amaral, docente titular do Centro Universitário Armando Álvares Penteado (Faap).

Ausência de potências e efetividade questionável

A criação do TPI na virada do século atendeu a clamores antigos pela criação de um órgão penal internacional, que vinham desde o Tribunal de Nuremberg, criado ao fim da Segunda Guerra Mundial para julgar os crimes nazistas. De lá para cá, contudo, uma série de questões sobre a efetividade e a real possibilidade de responsabilização e punição de criminosos de guerra e contra a humanidade surgiram.

— Como todo órgão internacional, a efetividade das decisões do TPI não é a mesma que vemos para a justiça doméstica dos países, mas isso decorre do fato que matérias internacionais passam pelo reconhecimento da soberania dos Estados. — explica Amaral. — Um número expressivo de signatários de um tratado é o que garante maior legitimação perante a comunidade.

 

Além de Putin, o TPI emitiu mandados de prisão contra ditadores como o líbio Muamar Kadafi e o sudanês Omar al-Bashir, os dois com cargo em exercício à época, e o ex-presidente marfilense Laurent Gbagbo. Os dois últimos foram efetivamente presos.

Embora surjam questões mesmo em países signatários eventualmente, o maior problema se identifica em casos como o retratado no argumento de Lula: o não-reconhecimento do órgão por países com peso geopolítico, como EUA, China e Rússia. Apesar disso, indicam os professores, a ausência desses países centrais nunca havia motivado uma tentativa de descreditar a cooperação internacional em torno da jurisdição do TPI.

 

— O Brasil criticou, por décadas, os tratados bilaterais que os EUA fizeram no contexto de suas guerras contra o terror, fazendo com que países em que atuaram com missões de paz como Iraque e Afeganistão se comprometessem a não entregar nenhum cidadão americano ao TPI, caso se abrisse uma investigação por lesa-humanidade. — disse Cerqueira. — Isso demonstra como o Brasil sempre foi um fiador desse sistema de responsabilização internacional.

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