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Para acabar com as "meias-entradas"

PELO FIM DO AJUSTE

 

A luta contra os privilégios estabelecidos no Estado brasileiro é o maior desafio do país. Num artigo extenso e fundamental, publicado ontem no jornal Folha de S.Paulo, os economistas Marcos Lisboa e Samuel Pessôa estimam em 5,6% do Produto Interno Bruto (PIB) nosso desequilíbrio fiscal – metade equivale ao déficit primário e metade é necessária para impedir a dívida pública de crescer.



“A raiz da crise fiscal é o crescimento do gasto público nos últimos 25 anos, de pouco menos de 6% ao ano acima da inflação, o dobro do crescimento do PIB no mesmo período”, escrevem. Nas últiimas décadas, enquanto a economia crescia, o tamanho do Estado crescia ainda mais. Segundo a análise deles, mesmo com a retomada do crescimento, há fatores estuturais que favorecem a expansão do Estado além dos limites de sua possibilidade.

O mecanismo descrito por eles se repete em várias áreas – da universidade pública ao BNDES, da legislação tributária à Lei Rouanet, das aposentadorias e pensões do setor público ao sistema S. Todos esses casos são exemplos de um fenômeno que Lisboa e Pessôa resumem por uma imagem: a meia-entrada no cinema. Quem recebe o benefício paga menos. Mas é uma ilusão achar que o dono do cinema cobrará o mesmo preço dos demais. O ingresso sairá, para todos os outros, mais caro do que sairia se não houvessse a meia-entrada. Como resultado, a maioria financia o privilégio de uma minoria.

O custo disso para o país é imenso. “A sociedade está refém de uma armadilha em que essas meias-entradas convivem e resultam em uma situação insustentável para as contas públicas”, escrevem. A questão central é que todos esses privilégios estão estabelecidos na lei. São resultado legítimo da mediação de todas as forças políticas feitas por nossas instituições – entre as quais, a mais relevante é o Congresso Nacional. Mudá-los envolve modificar um sem número de leis, normas e regulamentos, quando não artigos da própria Constituição. E exige enfrentar interesses articulados e barulhentos, em nome da maioria silenciosa (acima, um protesto contra o ajuste fiscal em São Paulo).

Pôr tudo isso em prática envolve duas agendas, distintas e paralelas. A primeira é institucional. Algum tipo de mecanismo torna o Brasil mais propício à criação desse tipo de privilégio do que outros países. É como se tirar proveito de alguma mamata no Estado fizesse parte não apenas da nossa cultura, como sabe qualquer leitor atento de Machado de Assis. Faz parte também dos mecanismos que criam as leis, do funcionamento (ou não-funcionamento) da Justiça e da quase inevitável apropriação do Executivo por grupos de interesse, qualquer que seja o partido no poder.

É preciso descobrir em que ponto do nosso arranjo institucional estão abertas as brechas para a criação das meias-entradas. Para isso, é preciso historiar todas elas e verificar como elas foram colocadas em prática, por quem e por quê. Se não houver algum tipo de responsabilidade atrelada ao privilégio que de alguma forma o justifique, haverá um forte argumento para sua extinção, sempre dentro das regras da democracia.

A segunda agenda, paralela à primeira, deriva da regra implícita em todas as conversas sobre o ajuste fiscal, resumida por Lisboa e Pessôa numa frase feliz: “O ajuste fiscal deve ser sempre realizado sobre os demais; nunca sobre nós mesmos”. Enfrentar as resistências ao fim dos privilégios exige, com o perdão do trocadilho, conhecer exatamente quem são esses “nós” a desatar. Sindicatos? Empresas subsidiadas? Pensionistas? Funcionários públicos?

É preciso mapear exaustivamente as meias-entradas. Não se trata de trabalho trivial. Mapear não é apenas historiar. Além de detectar as brechas que permitiram o surgimento delas, um mapa bem-feito avalia seu custo para o Estado, aponta os grupos que são beneficiados por elas, estima o poder político de cada grupo, seu grau de organização e sua força de pressão. É um desafio conjunto para economistas e cientistas políticos.

Contrapondo a força de cada um desses grupos ao prejuízo que geram para todos os cidadãos, será possível fazer um cálculo de custo-benefício. Vale a pena comprar briga primeiro com a turma da universidade pública ou com a turma que mama no BNDES? Com o sistema S ou com os aposentados e pensionistas? A resposta a essas questões permitirá construir uma estratégia política para acabar com as meias-entradas.

Há, por fim, um gigantesco desafio de comunicação, para convencer a maioria silenciosa da importância de acabar com os privilégios. A sociedade brasileira é afeita à acomodação, e resistências culturais costumam ser dificílimas de transformar. Construir uma narrativa capaz de mudar essa cultura tolerante com o privilégio na mente da nossa população pode acelerar a transformação. Ela não será imediata, isso é certo. Mas não é tão difícil entender. O mecanismo das meias-entradas é sempre o mesmo: o barato sai caro. Eis aí, com base no diagnóstico de Lisboa e Pessôa, um projeto político que poderia mudar o Brasil. por Helio Gurovitz

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