100 dias sem foco
Dora Kramer
Jornalista e comentarista de política / FOLHA DE SP
Nada contra o "roadshow" internacional do presidente Luiz Inácio da Silva nem aos conselhos que dá ao mundo sobre como solucionar a guerra no Leste Europeu e nos palpites a respeito das relações entre países, notadamente ditaduras. Benfazejo o empenho em tirar o Brasil da condição de pária em que nos colocou o antecessor.
Bem-vinda também a revisão de atos nefastos, de decisões retrógradas, de comportamentos inaceitáveis e socialmente insensíveis. Fala-se em alívio civilizatório; de fato, uma vantagem. O desafogo, porém, traz o risco do repouso. E, pelo que temos visto nestes três meses e pouco, a trégua não se dá no conforto de um berço esplêndido.
Longe disso estamos. Falta foco nos problemas a serem enfrentados com urgência, sobram confusões, desacertos e retrocessos. Minorias são importantes, mas não menos o é a maioria. O presidente fala em olhar para frente, pede paciência. Mas o tempo de estio seria normal se ele fosse aprendiz no ofício. Em matéria de chegança, Luiz Inácio é catedrático. Comandou duas vezes os fatídicos 100 dias e outras duas foi espectador engajado de seu partido.
Tanto que fez campanha referido nas experiências anteriores. Daí a cobrança mais intensa e frágil à justificativa de que está "só no começo". Desmontar algo era preciso, mas destruir tudo em áreas essenciais ao bem-estar da população beira a irresponsabilidade.
Demolição do marco do saneamento, anulação da Lei das Estatais, volta das invasões de terras produtivas, gambiarra no orçamento secreto, sinal de repetição de velhos erros na política de preços dos combustíveis, contestação da ação autônoma do Banco Central e, pior, cancelamento de privatizações por apetite de poder e controle.
Tivéssemos ido por esse caminho, o Brasil ainda estaria nas garras da telefonia estatal, para citar só o caso mais emblemático, com farta distribuição de cargos nas teles para a infelicidade geral da nação.