Fome, falta de saneamento e déficit habitacional: como as desigualdades sociais aparecem no Ceará
“Se você é filho de pobre, há uma probabilidade muito alta de ser pobre também”, conclui Alesandra Benevides, doutora em Economia, sobre a realidade cearense difícil de mudar. Quem está nessa situação, convive com incertezas que ameaçam a sobrevivência: falta comida, emprego e moradia digna. Feridas há muito tempo abertas pela desigualdade.
O termo, inclusive, carrega variantes assim como a doença pandêmica. Há desigualdade de renda, de acesso à educação e saúde, mas uma parece ser a mais cruel. A desigualdade de oportunidades, que desfaz as perspectivas de futuro. O problema é uma ferida no Brasil. Tanto que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) afirmou que o combate à desigualdade será a prioridade em seu terceiro mandato.
"Desempregados (estão) exibindo no semáforo cartazes de papelão que envergonham a todos: 'Por favor, me ajuda'”, disse em meio a lágrimas. Lula contextualizou o período em que há pobres em filas por ossos para aliviar a fome e ricos esperando a compra de carros importados.
Entre cearenses, isso varia em intensidade de acordo com o território, como explica Lauro Chaves Neto, professor da Universidade Estadual do Ceará (Uece) e presidente da Academia
Cearense de Economia.
“Nós vivemos em um País extremamente desigual, e dentro dele, vivemos em um Estado terrivelmente desigual. Isso se manifesta tanto social como territorialmente”, atesta.
Quem vive em bairros nobres da Capital pode ter um padrão de vida semelhante ao de países mais ricos do mundo, enquanto na periferia está o contexto similar às nações mais pobres. No interior, há diferenças fortes entre as sedes e os distritos municipais.
“Isso gera uma dívida social gigantesca, não é que nós queremos uma sociedade onde todo mundo vai ter exatamente a mesma coisa, porque as pessoas têm resultados diferentes na vida”, completa o especialista.
Isso também passa por marcadores sociais, como acrescenta Alesandra também coordenadora do Laboratório de Estudos da Pobreza (LEP) da Universidade Federal do Ceará (UFC) em Sobral.
“A desigualdade de um pobre e preto, numa periferia de um grande centro urbano é diferente do que acontece com pessoas na zona rural. Tem que colocar nessa conta também a segurança pública”, propõe.
A realidade não passa despercebida e afeta, principalmente, as pessoas negras e pobres, como avalia Ingrid Rabelo, assessora de Juventudes do Centro de Defesa da Vida Herbert de Souza (CDVHS), no Grande Bom Jardim.
“Quando a gente anda pelas ruas, vemos o aumento de famílias com crianças pequenas pedindo ajuda para poder comer, para pagar o aluguel e continuar sobrevivendo", observa. Isso ganha uma dimensão por meio dos números.
Metade dos lares onde vivem crianças cearenses enfrenta todo dia o risco de não ter nada ou pouquíssimo para comer: 51,6% destas residências estão enquadradas em insegurança alimentar moderada ou grave.
Esse recorte da fome foi descoberto pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan). O levantamento inclui a realidade de 506 pessoas ouvidas no estudo, das quais 128 vivem em famílias com crianças.
A realidade nos lares visitados mostra que a maioria (34,2%) tem renda entre R$ 325 e R$ 651 por pessoa, vivendo no mesmo lugar com menos de 3 pessoas (44,1%), ou entre 3 e 4 (41,9%). A pandemia já havia causado o endividamento em 42,8% desses lares no estudo.
Esse contexto fez com que instituições sociais, antes voltadas para arte e cultura, concentrassem esforços para combater a fome.
"As pessoas precisam da ajuda de um vizinho, um familiar ou até mesmo das cozinhas comunitárias. Também aumentou o número de associações que destinam as ações, principalmente, para combater a insegurança alimentar”, conclui Ingrid.