Papel do governo é a gestão pública, não a caridade
19 de novembro de 2021 | 15h57
“O Brasil que pode ajuda o Brasil que precisa.” Este foi o slogan que marca a chamada do Twitter de uma campanha do governo federal promovida pelo Ministério da Cidadania. A ideia é instigar a doação para o programa “Brasil Fraterno - Comida no Prato”. Empresas que fazem doações não pagam ICMS e ganham um selo. Este ano vimos atuação semelhante em outros níveis de governo.
Durante o inverno, São Paulo teve uma das noites mais frias das últimas décadas. Vários grupos da sociedade civil, organizados formalmente por entidades religiosas ou ONGs ou informalmente por redes de conhecidos, fizeram campanhas de doações e entregas de cobertores e agasalhos para pessoas em situação de rua.
Em evento coordenado entre o governo do Estado de São Paulo e a Prefeitura, em julho, os governos locais distribuíram 50 mil cobertores para pessoas em situação vulnerável. Na ocasião pensei que havíamos sido pegos desprevenidos. Logo, o que restava para os governos locais era ocupar um espaço que é comum à sociedade civil, o da caridade. Não havia tempo, ou foco político, para o desenho de uma política pública apropriada para evitar os problemas do inverno rigoroso numa cidade sem estrutura para isso. Restava aos governos locais uma atitude bem-vinda, distribuir cobertores, mas que não resolveria o problema de forma fundamental.
No caso do governo federal, usar o espaço de atuação da sociedade civil é ainda mais preocupante. A discussão sobre o aumento da fome e da miséria por conta da pandemia, a dificuldade do governo em dar continuidade ao auxílio emergencial e a falta de clareza nos novos rumos dos programas de assistência social mostram que houve tempo e oportunidade para uma discussão séria de políticas públicas de combate à pobreza extrema.
O governo federal possui todos os mecanismos para atuação em projetos sociais que foquem em transferências de renda. Temos largas evidências de que transferir renda, e não doar bens, é a forma mais eficiente de lutar contra a pobreza. É o governo de um país continental, que carece de parcerias locais para chegar até o povo. Gastar recursos com doações que serão distribuídas em centros espalhados pelo País remonta a uma tentativa de planificar a economia de forma ineficiente.
Um programa de incentivos a doações escancara a dificuldade do atual governo em entender seu papel como gestor e formulador de políticas públicas. Caridade fazemos nós, cidadãos. O governo federal tem de se preocupar em desenvolver, implementar, medir o impacto e a efetividade de políticas públicas feitas com evidência.
*PROFESSORA DO INSPER, PH.D. EM ECONOMIA PELA UNIVERSIDADE DE NOVA YORK EM STONY BROOK