Governo mira 2022 e quer 'sobra' do Bolsa Família para alimentos e cisternas no Nordeste
O governo Jair Bolsonaro planeja redirecionar recursos do Bolsa Família para turbinar programas assistenciais com foco no Nordeste até o fim deste ano.
O objetivo é atender ao menos parte dos pedidos da ala política que já somam quase R$ 3 bilhões para ações como compra de alimentos, construção de cisternas e pagamentos de até R$ 3.000 a produtores rurais às vésperas do calendário eleitoral de 2022.
Nos dois principais programas em análise —compra de alimentos e cisternas—, o Nordeste seria o principal foco.
A região abriga 68% das famílias brasileiras com dificuldade de acesso à água e 43% dos municípios que demandam mais recursos para a compra de alimentos, segundo análise do governo.
Os programas são executados pelo ministro da Cidadania, João Roma (Republicanos), que pode sair do governo em seis meses para ser candidato ao Governo da Bahia.
O estado é o que demanda mais recursos nos dois principais programas analisados, segundo levantamento da própria pasta.
O aporte de recursos agora contrasta com as afirmações de diferentes especialistas sobre uma baixa alocação de verbas para políticas assistenciais ao longo da gestão.
No próprio governo, é dito que diferentes ações estão à beira da paralisação em diversas localidades.
Carlos Eduardo Leite, coordenador-geral do Serviço de Assessoria a Organizações Populares Rurais (entidade civil da Bahia), diz que os recursos para cisternas começaram a diminuir desde 2015 e que agora praticamente pararam de chegar.
"Os aportes ao semiárido pelo governo federal foram praticamente interrompidos", afirma.
Ele diz que chegou a haver um chamamento público em 2019, mas as organizações que ganharam o edital tiveram dificuldades e desde aquele ano —o primeiro da gestão Bolsonaro— não há execução de chamadas do governo federal para construção de cisternas .
Para abastecer esses programas agora, o governo planeja usar parte da "sobra" de R$ 9,4 bilhões do Bolsa Família a ser observada em 2021.
O saldo surgiu após a substituição do programa pelos pagamentos do auxílio emergencial para a maior parte dos beneficiários durante o ano.
Nem toda sobra verificada será usada nas ações assistenciais em discussão porque a maior parte do saldo vai para o Auxílio Brasil, substituto do Bolsa Família planejado para entrar em vigor em novembro.
De acordo com o Ministério da Economia, R$ 7,7 bilhões do antigo programa social serão destinados ao novo, que também receberá R$ 1,6 bilhão do aumento temporário do IOF (Imposto sobre Operações Financeiras).
O Ministério da Cidadania trabalha com o remanejamento de aproximadamente R$ 2 bilhões do Bolsa Família, de acordo com membros do governo.
Nathalie Beghin, economista do Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos, entidade que acompanha o orçamento público na defesa de direitos humanos e da democracia), ressalta que o envio dos recursos acontece depois de muito tempo de baixa alocação de verba na assistência social e isso pode, em sua visão, levantar discussões sobre uma possível motivação eleitoral.
Ela considera difícil compreender a existência de um saldo no Bolsa Família enquanto o país ainda convive com um cenário de pobreza.
"Não posso entender como tem sobra em um programa de transferência de renda em um país que está passando fome. Se tem uma sobra, e não consigo visualizar por quê, tem que revisar a base do Bolsa Família", afirma.
Beghin diz que o Bolsa Família é um programa mais focalizado em termos de público e mais eficiente para a redução da pobreza do que outros tipos de iniciativas, algo já demonstrado por levantamentos inclusive do Ministério da Economia, como na comparação com iniciativas como o abono salarial (espécie de 14º salário pago a trabalhadores de baixa renda).
Por outro lado, ela considera defensável reforçar os recursos dos outros programas assistenciais principalmente em situações emergenciais como a deste momento, gerada pela Covid-19.
Para Beghin, seria cruel estabelecer uma dicotomia entre eles e o Bolsa Família, que, em sua visão, não conseguiria resolver sozinho o problema da pobreza no país.
"[O Bolsa Família] é um dos melhores do mundo para a focalização, é a solução. O que não quer dizer que você não tenha que alocar recursos a programas que esse governo desmontou", diz.
"Um programa de transferência de renda, mesmo o melhor do mundo, não resolve todos os problemas do país. Não tem solução milagrosa", afirma a economista.
Ao todo, pelo menos nove programas do Ministério da Cidadania estão na fila dos recursos. Entre eles também está o Criança Feliz (que envia materiais didáticos a famílias carentes), o Forças no Esporte (voltado à prática esportiva de crianças e adolescentes dentro de organizações militares combinada com a oferta de alimentos), além do programa de acolhimento a usuários de drogas.
Vinicius Amaral, consultor legislativo do Senado Federal, afirma que a sobra no Bolsa Família e o remanejamento para outras ações representam mais uma situação decorrente da falta de organização orçamentária por parte do governo frente a demandas sociais —inclusive as geradas pela Covid-19.
"Temos a discussão da ampliação do Auxílio Brasil e a questão de como lidar com os precatórios, e estamos vendo que o espaço orçamentário deixou de ser um espaço de planejamento para ser um espaço de busca permanente por burlas jurídicas", diz.
"Ora isso ocorre por bons motivos, para ações assistenciais, ora para fins estranhos à Constituição", afirma Amaral.
Diante do crescimento da inflação e da continuidade da pandemia, governo e aliados agora discutem uma possível prorrogação do auxílio emergencial —o que, para Amaral, evidencia novamente o problema.
Para ele, a existência do teto de gastos, que impede o crescimento real das despesas federais, virou disfuncional.
"Voltou à tona a discussão de renovar mais uma vez o auxílio emergencial para que ele fique fora do teto, então a gente vê que isso tem gerado um ambiente totalmente caótico em termos de planejamento. Vide a explosão da fome e da miséria, é um regime totalmente inconsistente", diz.
Apesar das demandas pela renovação do auxílio, o ministro Paulo Guedes (Economia) vem resistindo e defende que a política de transferência de renda seja feita por meio do Auxílio Brasil.
Nesta sexta-feira (1º), em meio às discussões, o ministro chegou a anunciar em um discurso no Palácio do Planalto que o auxílio emergencial seria estendido. Porém, a assessoria de comunicação de Guedes disse que ele se confundiu.
"O Ministério da Economia esclarece que o governo quer estender a proteção aos cidadãos em situação de vulnerabilidade com o novo programa social Auxílio Brasil, que substituirá o Bolsa Família", afirmou a pasta, em nota.
O Ministério da Cidadania afirma que tem trabalhado para fortalecer os programas sociais e estabelecer uma rede de proteção para a população em situação de vulnerabilidade no país.
"É compromisso desta gestão ampliar o alcance das políticas socioassistenciais e atingir, com maior eficácia, a missão de superar a pobreza e minimizar os efeitos da desigualdade socioeconômica", afirma a pasta, em nota.
Segundo o ministério, os efeitos da pandemia afetam áreas que vão além das políticas diretas de transferência de renda e, por isso, surgiu a proposta de readequação do orçamento.
"O remanejamento poderá promover o incremento de recursos em áreas com alto impacto nas condições de vida das famílias que mais precisam. É o caso de programas como Cisternas, Alimenta Brasil, Distribuição de Alimentos e Assistência Social, que promovem a garantia de direitos fundamentais e, ao mesmo tempo, favorecem a retomada da atividade econômica", afirma o ministério.