Veja o que mudou para os cearenses um ano após a inauguração da Transposição do Rio São Francisco
No dia 26 de junho de 2020, foi inaugurado o Eixo Norte da Transposição. Doze meses depois, especialistas apontam melhorias no abastecimento, enquanto pescadores lamentam o 'pouco impacto' da maior obra hídrica do Brasil
Há exatos 12 meses era inaugurado o trecho do Eixo Norte do Projeto de Integração da Transposição do Rio São Francisco (Pisf). A maior obra hídrica brasileira tem por proposta garantir, ao fim de todas as etapas, o abastecimento de 12 milhões de habitantes nos estados do Ceará, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte. O trecho inaugurado há um ano beneficia diretamente o Ceará. Aqui, o projeto prevê o beneficiamento de 4,5 milhões de pessoas.
Mas, 365 dias após a inauguração, o que mudou na segurança hídrica do Estado? As propostas nesta primeira fase foram alcançadas? Para responder esta e outras questões, o Diário do Nordeste ouviu representantes da Secretaria dos Recursos Hídricos (SRH) e da Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos (Cogerh), e também entrevistou moradores do entorno do maior açude cearense e principal beneficiário da obra: o gigante Castanhão.
O engenheiro civil, mestre em Recursos Hídricos e titular da SRH, Francisco José Coelho Teixeira, avalia positivamente este primeiro ano de Transposição. Em sua concepção, a proposta inicial foi alcançada e, para 2022, o projeto deve seguir semelhante ao que ocorrera neste ano, com possibilidade de aumento na vazão da água transposta do Velho Chico para o Castanhão, localizado na Bacia Hidrográfica do Baixo Jaguaribe.
"O que o Ministério da Integração se propôs a fazer após a inauguração, aconteceu. Então avalio que [o cronograma] foi dentro do previsto”, pontua Teixeira. A inauguração do Eixo Norte aconteceu na cidade de Salgueiro (PE), e, no mesmo dia, as águas romperam os limites cearenses e começaram a encher o reservatório de Jati, na cidade de mesmo nome, no Sul do Estado.
Nove meses depois, após ir enchendo as barragens ao longo de todo o percurso de cerca de 400 quilômetros, as águas chegaram ao Castanhão. Era dia 10 de março. Dia que para muitos marcaria a concretização de um sonho. Marcaria. O engenheiro de pesca Edson dos Reis Sousa explica a conjugação do verbo no futuro do pretérito.
"Não teve o impacto que tanto a população e piscicultores queriam e esperavam. Não houve esse impacto positivo que por anos foi prometido. Tanto que ao fim desta quadra chuvosa, o Castanhão está com volume 3% inferior ao que estava em junho de 2020", detalha o engenheiro de pesca que trabalha no Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar) e no Programa Águas do Nordeste.
Roberto Moreira, de 67 anos é pescador artesanal há quase três décadas. Atraído pela "grande quantidade de peixes", saiu de Itaitinga para pescar nas águas do Castanhão há pouco mais de dez anos. No início, revela, "era uma atividade lucrativa, a gente fazia muito dinheiro". Depois vieram os sucessivos anos de estiagem a atividade declinou vertiginosamente.
Com a inauguração da Transposição, Roberto e tantos outros pescadores sonharam reviver os "grandes tempos de pesca". A expectativa era impulsionar a renda e, finalmente, cessar com os inúmeros anos de baixa renda. Não aconteceu.
"Até hoje a gente espera. É como se não tivesse chegado nada. A água sumiu e hoje está saindo mais que entrando. A tendência, para os próximos meses, é baixar ainda mais [o volume do açude]. Desse jeito não tem como aumentar a pesca", lamenta.
Roberto conta que há uma década, "apurava entre 100 a 150 reais por dia". Hoje, "com muito esforço", consegue pescar 10 kg de peixe por dia. O quilo é vendido por R$ 4.
Para Teixeira, no entanto, a transposição não pode ser observada por esse prisma. Ele explica que o Pisf não tem, “e nunca terá”, a capacidade ou missão de “encher o Castanhão”. “O Açude tem 6 bilhões de metros cúbicos. É impossível encher um reservatório deste porte por meio de bombeamento. O Castanhão só vai voltar a ficar cheio quando tivermos sucessivas chuvas volumosas, como ocorreu em 2012”, detalha o titular da SRH.
Ao que o projeto se propõe, aconteceu, que era trazer água ao Castanhão e garantir o abastecimento de milhões de pessoas da Região Metropolitana de Fortaleza neste período seco [segundo semestre do ano, onde as chuvas no Estado são escassas].FRANCISCO JOSÉ COELHO TEIXEIRATitular da SRH
Ainda segundo Francisco Teixeira, entre março e junho deste ano, o Castanhão recebeu 65 milhões de metros cúbicos de águas transpostas do São Francisco. “Representa 1% da capacidade total do reservatório. Se analisarmos o número friamente, podemos pensar ser pouco, mas não é. Esse aporte garante segurança hídrica até o próximo ano. A RMF e o Vale do Jaguaribe não terão problemas de abastecimento”, afirma o secretário.
Questionado se a vazão poderia ter sido maior, Teixeira reforça que não. “A outorga da ANA [Agência Nacional de Águas] só permite o bombeamento de 25 metros cúbicos [por segundo] nas duas bombas atualmente em operação. Neste primeiro semestre, a vazão para o Castanhão foi de 12 m³/segundo, é um número bom. E, temos que lembrar, que a operação ainda é feita de forma provisória. O caminho oficial dessas águas será o Ramal do Apodi que está em fase de conclusão”, detalha.
O geógrafo e diretor de Operações da Cogerh, Roberto Bruno Rebouças, reforça a explicação de que a Transposição não tem por objetivo "encher o Castanhão" e ilustra que, "com a atual vazão transposta, o açude levaria 21 anos para ser enchido e isso se não tivéssemos nenhum uso da água ou perda por evaporação".
Em sua concepção, "mesmo que a obra ainda esteja longe de chegar ao horizonte total, o objetivo inicial de aumentar o abastecimento e garantia hídrica da Região Metropolitana [de Fortaleza] do Vale do Jaguaribe, foi alcançado". A referência que ele faz ao "horizonte total", diz respeito ao número de bombas em operação. Atualmente são duas, mas o projeto final prevê oito.
Questionado o que precisa ser feito para aumentar o número de estações de bombeamento, Rebouças preferiu não comentar e disse apenas que "por ser uma obra da União, o Estado não tem gerência sobre ela". A reportagem tentou contato com o Ministério da Integração, mas não obteve retorno.
Em 2021, mesmo com chuvas abaixo da média, a Transposição possibilitou que nós conseguíssemos levar água para RMF e reforçamos o Vale do Jaguaribe. Isso garante um segurança para milhões de cearenses.BRUNO REBOUÇASDiretor da Cogerh
Em 2021, o Castanhão teve aporte de 255 milhões de metros cúbicos de água, dos quais 64,5 milhões vieram do Velho Chico. Para o próximo ano, Teixeira revela que a SRH tentará, junto ao Ministério da Integração Nacional, aumentar a transferência de 65 milhões de metros cúbicos para “90 ou 95 milhões”. Neste ano de 2021, não haverá mais transposição das águas.
O engenheiro civil explica que, “transferir as águas no segundo semestre, quando não há chuva, as perdas por evaporação seriam muito grandes, não compensaria a operação”. Outro motivo, ainda segundo o titular da SRH, é a manutenção das estações de bombeamento que tiveram início neste mês de junho.
USO CONSCIENTE DA ÁGUA
Mesmo diante da segurança hídrica para este segundo semestre, conforme fora mencionado por Teixeira e Rebouças, ambos pregam cautela no uso da água. Segundo eles, caso as chuvas do próximo ano sejam novamente abaixo da média, o reservatório Castanhão tende a ter seu volume de armazenamento diminuído substancialmente.
"Pegando como exemplo este ano, vimos que menos de 1/3 veio da Transposição. O grande aporte ocorre através das chuvas. Por isso é importante manter as restrições vigente e sempre seguir com o uso consciente da água", posiciona-se Bruno Rebouças.
As restrições são redução da demanda de água do setor produtivo no Vale do Jaguaribe e a tarifa de contingência na Região Metropolitana de Fortaleza. "Essa tarifa faz com que as pessoas usem a água de forma mais segura, sem desperdícios".
Nós vivemos em uma região semiárida, em que as chuvas tendem a ser reduzidas. Não sofremos tanto, pois temos uma excelente infraestrutura hídrica e um modelo de gestão participativo que nos permite gerir essas águas com certa tranquilidade, sem que falte mesmo diante da seca.BRUNO REBOUÇASDiretor Cogerh
A Transposição do Rio São Francisco, portanto, é na avaliação dele uma obra que garante água de forma perene e reforça a segurança hídrica nos anos de poucas chuvas. "Ela [a Transposição] permite manter o uso da água, para abastecimento e setor produtivo do Vale do Jaguaribe, mas não permite, com a vazão atual, expandir essa utilização. Para isso, é necessário boa quadra chuvosa ou expansão do volume transposto, o que de momento é inviável", finaliza Bruno Rebouças.
"Não permitir o aumento do setor produtivo" é, na visão de Edson dos Reis, frustrante aos olhos dos piscicultores. "Todos nós, moradores, pescadores e piscicultores, esperamos muito por essa obra. Foram anos de espera e, quando ela ficou pronta, esperávamos que poderíamos retornar aos bons índices de produção, mas isso não aconteceu", revela.
Não tem como aumentar [a produção]. A água está muito baixa e estaria pior não fosse a chuva. Há grande risco de mortandade. Portanto, os piscicultores adotam estratégias para reduzir os prejuízos, como deixar menos de 50 peixes por metro quadrado e escalonar a produção, reduzindo bastante o número de peixes nesses períodos mais secos.BRUNO DOS REIS SOUSAEngenheiro de pesca
Em março deste ano, tão logo as águas começaram a chegar no Castanhão, especialistas teceram previsões arrojadas quanto ao setor produtivo. O presidente do Sindicato dos Produtores Rurais de Quixadá, José Amílcar Silveira, estimou que o setor pudesse ganhar, somente nas áreas dos perímetros irrigados do tabuleiro de Russas e Jaguaribe-Apodi, 10 mil empregos diretos em cerca de um ano.
Bruno Sousa considera essa projeção ainda distante, mas reconhece que as águas da transposição, a médio e longo prazo, podem reaquecer o setor produtivo. Em entrevista ao Diário do Nordeste, também em março, o presidente da Câmara Setorial do Agronegócio da Agência do Desenvolvimento Econômico do Ceará (Adece), Alexandre Fontelles projetou que as águas do São Francisco ficariam direcionadas ao consumo em Fortaleza e do Complexo do Pecém e as águas originais do Castanhão seriam direcionadas ao setor produtivo.
Na prática, tanto Rebouças como Teixeira, afirmam que isso aconteceu. "A gente passou a enviar águas para a RMF, estas vindas da Transposição, e o restante, proveniente do aporte das chuvas, ficaram destinadas ao Vale do Jaguaribe. Essa destinação garante o abastecimento da RMF e também possibilita a manutenção do setor produtivo", ponderou Francisco Teixeira.
O QUE É O PROJETO DE INTEGRAÇÃO DO RIO SÃO FRANCISCO?
O Projeto de Integração do Rio São Francisco com as Bacias do Nordeste Setentrional (Pisf) tem por missão garantir a segurança hídrica em 390 municípios nordestinos. Uma população estimada em 12 milhões de pessoas - dentre as quais mais de um 1/3 estão no Ceará. Além do abastecimento, estima-se a geração de emprego e renda, e promoção da inclusão social.
A obra foi iniciada em 2007 e teve inúmeras paralisações, acarretando na postergação do prazo de conclusão. Antes da chegada ao Açude Castanhão passaram pelas cidades cearenses de Jati, Missão Velha, Icó, Aurora, Lavras da Mangabeira, Jaguaribe e Jaguaribara.
Espera-se aumentar a oferta hídrica per capita em médio prazo para o consumo humano, atividades agrícolas e industriais, viabilizando maior igualdade de oportunidades de emprego e renda para a população residente por meio da garantia de fornecimento de água para o uso múltiplo, especialmente pelos rios intermitentes, com prioridade para as áreas de maior densidade demográfica.COMPANHIA DE DESENVOLVIMENTO DOS VALES DO SÃO FRANCISCO E DO PARNAÍBA (CODEVASF)
A Transposição tem extensão de 477 km, entre os dois Eixos de transferência de água - Norte (que diz respeito ao Ceará) e Leste. O Projeto integrará a bacia do São Francisco com as bacias dos rios Jaguaribe, Piranhas Açu e Apodi "por meio da implantação de canais, drenagem, estações de bombeamento e adução".
Segundo a Codevasf, designada como operadora oficial do Projeto, ao mesmo tempo em que busca garantir o abastecimento por longo prazo de grandes centros urbanos da região, como Fortaleza, Juazeiro do Norte, Crato, Mossoró, Campina Grande, Caruaru, João Pessoa e de outras cidades de pequeno e médio portes do Semiárido, "o Projeto beneficia áreas do interior do Nordeste com potencial econômico, importantes no âmbito de uma política de desconcentração do desenvolvimento nacional". diarionordeste