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Bolsonaro libera recorde de rádios comunitárias desde o governo Lula

Felipe Frazão e Vinícius Valfré, O Estado de S.Paulo

26 de julho de 2020 | 14h45

BRASÍLIA - O presidente Jair Bolsonaro bateu o recorde de liberações de rádios comunitárias nesta década. Entre março e abril, ele enviou ao Congresso autorizações para o funcionamento de 440 estações comunitárias nos rincões e periferias do País, parte delas renovação de emissoras que já estão no ar. A quantidade supera as 302 outorgas do governo Dilma Rousseff, em 2013. Muitos dos canais liberados pelo atual governo têm indícios de atividades políticas.

Estadão identificou entre os representantes formais dessas rádios pessoas que são ou foram filiadas a partidos e já concorreram ou se elegeram para cargos de vereador e prefeito por legendas do Centrão, como Republicanos, Progressistas, PSD e PL. Há também dirigentes dessas rádios em siglas menores, entre as quais o PSC, o PROS e o Patriota.

A política faz parte do cotidiano das emissoras. No último dia 14, ouvintes da Rádio Top FM, em Catalão, Goiás, foram surpreendidos com uma discussão ao vivo. Ao saber que o adversário e ex-prefeito Jardel Sebba (PSDB) daria entrevista, o vereador Rodrigão (SD) invadiu o estúdio. O locutor Mamede Leão tentou impedi-lo, sem sucesso. “O dono da rádio sou eu, Mamede. Jardel não fala hoje aqui, não”, disse o vereador. O locutor reagiu: “Mas o programa não é seu, Rodrigão”. O programa saiu do ar no dia seguinte.

Atualmente, há 4,6 mil rádios comunitárias em operação legal. O “boom” mais recente ocorreu no governo de Luiz Inácio Lula da Silva. O ex-presidente mantém o recorde de outorgas, com 630 liberações em 2009 – a Câmara faz esses registros há 16 anos. Na campanha de 2018, a equipe de Bolsonaro avaliava que as rádios comunitárias eram “focos petistas” e serviam para divulgar ações de vereadores, prefeitos e deputados ligados ao partido.

Agora, a visão do Planalto mudou. Representantes do setor disseram à reportagem que o governo ainda não teve tempo de formar uma rede de emissoras simpatizantes, mas já usa a liberação de outorgas – uma demanda represada da área – como moeda de troca no Congresso.

A lei veda o vínculo das associações outorgadas com rádios com agremiações partidárias ou religiosas. Acaba, no entanto, não alcançando ligações informais. A Rádio Elshadday FM, do Recife, foi uma das renovadas neste ano. Ela é dirigida por Marcelo Elshadday, pastor da Igreja Evangélica Internacional Elshadday, fundada pelo apóstolo Marcos Campelo.

O líder religioso, que já tentou ser vereador em 2008 e 2012 pelo PSL e pelo PPS, usa a emissora para atrair fiéis. “Quero convidar você para estar hoje comigo, com o pastor, em um culto de unção e libertação”, afirmou Campelo em recente transmissão. Apesar das coincidências, o apóstolo disse ao Estadão não haver vínculo. O pastor Elshadday, por sua vez, reforçou que são coisas distintas. “Não é vínculo, a rádio é aberta para qualquer pessoa.”

As comunitárias foram instituídas, há 22 anos, por uma lei do então presidente Fernando Henrique Cardoso. A norma reconheceu o funcionamento das estações, antes consideradas piratas, que operavam em locais não cobertos por emissoras comerciais ou educativas. Sob controle formal de associações comunitárias, as rádios costumam funcionar como cabos eleitorais de políticos. As rádios têm baixa potência (25 Watts) e um alcance de 4 km, que pode ser maior a depender do relevo onde a antena for instalada – elas costumam reproduzir a programação na internet.

Uma característica das comunitárias é o conflito comercial. A legislação veda as propagandas. Só é liberado “apoio cultural”, com informações institucionais. Na prática, porém, as rádios são repletas de anúncios de comércios locais e prefeituras e Câmaras Municipais. “Não é comercial, é apoio cultural. Comercial é rádio comercial. Isso aí é o linguajar do governo”, disse Fernando Marques, diretor da Rádio Planalto FM, de Aparecida de Goiânia, Goiás, incluída na mais recente lista de renovações.

O presidente da Associação Brasileira de Rádios Comunitárias (Abraço), Geremias dos Santos, observou que as rádios difundem tradições, debatem problemas locais e, na pandemia do coronavírus, abriram espaço para a educação a distância. “Estão dando um show de superação e solidariedade.”

Licença. A liberação recorde de outorgas pelo governo Bolsonaro ocorreu justamente no período anterior ao processo das eleições municipais. As emissoras só podem entrar no ar quando Câmara e Senado dão autorização, mas elas obtêm licença provisória para transmitir se o Legislativo demorar mais de 90 dias para votar a outorga. É o que deve ocorrer neste ano, já que as comissões nas duas Casas não foram instaladas e não há data prevista para votação.

Estudo aponta elo político

Um estudo sobre a autorização de emissoras como moeda de barganha política, do consultor legislativo da Câmara Cristiano Aguiar Lopes e do professor emérito da Universidade de Brasília Venício de Lima, apontou, em 2007, que metade das rádios comunitárias autorizadas nos governos FHC e Lula tinha elo político.

À época, o levantamento concluiu que ter padrinho poderia ser determinante na aprovação e na velocidade de obtenção de outorga. O uso político das liberações das comunitárias ocorre em dois níveis: no municipal, em que as outorgas têm um valor no “varejo” da política, e no estadual/federal, no qual se atua no “atacado”, escreveram os pesquisadores.

Em uma tese de doutorado aprovada no ano passado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Aguiar apontou que associações comunitárias com apadrinhamento político têm o dobro de chance de obter outorgas, já que existem pedidos de deputados e senadores para agilizar os processos.

O consultor analisou 5,5 mil processos com interferência parlamentar no Ministério das Comunicações, até 2015. Constatou que os “candidatos radiodifusores” melhoram seu desempenho eleitoral após obter o controle de rádios. Ao observar as cinco últimas disputas, de 2000 a 2016, notou que 46,1% dos 1.058 candidatos radiodifusores se elegeram.

A influência aumenta nas cidades onde o rádio é o único meio de comunicação. “A posse dessas rádios gera um ganho de capital político e quem consegue uma outorga tem mais chances de se eleger prefeito”, disse Aguiar. Na avaliação do pesquisador, o poder público faz vista grossa a uma apropriação das rádios para fins partidários.

Ministro diz que fará ‘peneira’ em processos parados

O governo afirmou que as análises de pedidos de outorga de rádios comunitárias seguem ritos “estritamente técnicos e jurídicos”. Atualmente, há cerca de 7 mil processos relacionados a outorgas de serviços de radiodifusão em geral em trâmite no Ministério das Comunicações.

Fábio Faria

A pasta disse que “os procedimentos de outorga dos serviços de radiodifusão estão sendo revistos com vistas à desburocratização, melhoria de eficiência e agilidade, simplificação, modernização da legislação”.

Ao Estadão, o ministro das Comunicações, Fábio Faria, que assumiu a pasta em 17 de junho, declarou que vai submeter os processos parados a uma “peneira”. Ele chegou a estimar em 5 mil os que estavam na Presidência e pediu a devolução ao ministério para avaliar. Havia 616 em estágio avançado, segundo a Secretaria-Geral da Presidência. Faria disse que o presidente Jair Bolsonaro não deu nenhuma orientação específica sobre o assunto: “Não falou comigo sobre isso. Esse movimento de buscar e analisar os casos é 100% meu”. COLABOROU JUSSARA SOARES

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