A reforma silenciosa de Paulo Guedes para revolucionar a máquina federal
A transformação de um país leva tempo. Como uma obra de engenharia, ela é feita tijolo a tijolo, em um processo que exige paciência e resiliência. Ao reformar o Estado brasileiro, Paulo Guedes, ministro da Economia, tem sentido na pele as dificuldades de tocar tamanha empreitada. Enfrenta a resistência da classe política, dos grupos corporativistas e, não raras vezes, do próprio governo. Não poderia ser diferente. No caso da aprovação da reforma da Previdência uma infinidade de interesses foi confrontada. O Congresso modificou o projeto inicial para acomodar demandas e o próprio presidente Jair Bolsonaro cedeu diante das reclamações de militares e policiais. Mesmo assim, o resultado final foi satisfatório e seus efeitos já são palpáveis no início de recuperação da economia e na boa receptividade internacional das medidas. Na quarta-feira 11, a agência de risco americana Standard & Poor’s, a primeira a confiscar o grau de investimento do país, em 2015, elevou sua perspectiva para a nota de crédito do Brasil de estável para positiva, um sinal inconteste de credibilidade. Romper com estruturas fossilizadas pela ineficiência, pelos privilégios e pelo desperdício implica desalojar e desagradar um contingente imenso de beneficiários. E, quanto mais exposto o embate, maior o esforço a ser empreendido. Uma das críticas que a equipe econômica recebeu logo depois da reforma da Previdência foi de não aproveitar o embalo para aprovar as reformas administrativa e tributária. Houve um recuo, sim, em razão das agitações políticas na América Latina. Mas o fato é que Guedes e sua turma não estão parados esperando os inimigos se desmobilizarem. Longe dos holofotes, do funcionalismo militante e da barganha política, eles têm implementado uma agenda silenciosa, atacando frentes decisivas para tornar o Estado brasileiro mais moderno e eficiente.
Nas profundezas da administração pública, ganha contornos cada vez mais concretos o projeto batizado de Governo Digital, algo que pode revolucionar a máquina estatal. Desde o início do ano, 503 atividades que antes eram realizadas pela turma do carimbo e das certidões migraram para o ambiente virtual. Até agora, 26 órgãos transferiram suas operações do papelório para o mundo digital, em um plano que abarca onze ministérios. Com as medidas já adotadas, prevê-se que o Orçamento público seja destravado em 1,7 bilhão de reais por ano. Mas a perspectiva é que, ao fim da transição, a economia chegará a 40 bilhões de reais anuais. Um efeito prático foi a queda na fila de avaliação de pedidos de aposentaria no INSS. No início do governo, havia 900 000 pessoas à espera de uma definição sobre suas demandas. Hoje, o número é de 135 000 pessoas. A automação de processos também auxiliará o governo a fazer uma transição muito mais tranquila para um modelo em que o número de funcionários seja bem menor que o atual. Com 11 000 servidores às portas da aposentadoria, o INSS corria o risco de entrar em colapso se não contratasse substitutos, pois tal contingente representa um terço de sua força de trabalho. Com a ajuda dos computadores e a internet, o governo agora pode despender os recursos necessários às contratações de forma mais inteligente. E o plano é ainda mais ambicioso. A ideia é enxugar a máquina federal extinguindo a substituição dos funcionários que vão se aposentar. Em conversas reservadas, Paulo Guedes estabeleceu uma meta: cortar o número de servidores pela metade em até seis anos.
Sem estardalhaço, a desburocratização é outra frente importante que vem sendo tocada pela equipe econômica. Nos últimos anos, inspirados pelas teorias do “Estado pode tudo”, os governos petistas criaram uma série de obrigações para a iniciativa privada, que, aos poucos, estão sendo limadas. Um dos focos é a crônica perda de competitividade das indústrias brasileiras diante das concorrentes internacionais. Há cinco décadas 30% do produto interno bruto brasileiro (PIB) era gerado pelo setor produtivo. Hoje esse índice está em 11%. Para estancar a desindustrialização, a equipe econômica decidiu atacar o excesso de regulamentação, que sufoca a atividade. Desde janeiro, 200 decretos e 4 800 portarias foram revogados pelo Ministério da Economia. Entre eles está o compêndio de Normas Regulamentadoras da Segurança e Saúde no Trabalho (NRs). No último semestre, o secretário de Previdência, Rogério Marinho, debruçou-se sobre as 37 NRs que, arcaicas, inibiam a contratação de novos profissionais e acarretavam altos custos aos empregadores. Com as mudanças, os empresários se livraram de 2 400 regras que os expunham a multas, como a obrigação de treinar os funcionários em todas as atividades da empresa (agora a exigência é só para as que implicam risco). A expectativa é que apenas com as seis normas revistas até agora o impulso gerado a partir do aumento de competitividade das empresas alcance 100 bilhões de reais em dez anos.
Resultado de um extenso mapeamento de recursos disponíveis, a atuação do Ministério da Economia vem sendo bem pragmática até aqui. Os técnicos avaliam quais soluções têm mais chance de ser bem-sucedidas com o mínimo de desgaste, desperdício de recursos e, principalmente, com o mínimo de conflitos. Obviamente, tais iniciativas são parte de um aprendizado — às vezes bem duro. A utilização de medidas provisórias para implementar mudanças traz uma série de vantagens ante o cancelamento ou publicação de instruções normativas, resoluções e decretos. Uma vez editadas pelo governo, elas têm efeito imediato até a aprovação pelo Congresso — e, para derrubá-las, o Legislativo precisa se mobilizar e votar pela sua revogação. Mas, em um governo reconhecidamente fraco na articulação política, nem sempre a estratégia dá certo. Recentemente, o ministério mandou ao Congresso a medida que criaria uma contribuição previdenciária de 7,5% sobre os pagamentos do seguro-desemprego a pessoas recém-demitidas. Com a proposta, o governo queria usar tais recursos para desonerar a folha de pagamento das empresas e, simultaneamente, criar uma fórmula para o desempregado contabilizar o tempo parado no cálculo da aposentadoria. A ideia foi metralhada tanto por opositores como por apoiadores do governo, a ponto de o impacto positivo de 130 bilhões de reais que traria às contas públicas em dez anos ter sido completamente ignorado. Não é fácil mudar um país.
Mas a tática de operar abaixo do radar vem dando bons resultados no geral. Duas semanas depois, outra MP apresentada por Guedes e sua equipe passou com maior tranquilidade. Batizada de Medida Provisória do Turismo, é uma obra exclusivamente tributária. Por um lado, ela ataca a isenção fiscal para o arrendamento de aeronaves. Por outro, cria o aumento progressivo de imposto para quem remete divisas ao exterior a fim de cobrir gastos de viagens. Com isso, a alíquota partirá dos atuais 6% para alcançar 15,5%. A forma de cobrança, aliás, é idêntica à da famigerada CPMF, pivô do desmoronamento da primeira proposta de reforma tributária idealizada por Guedes. A diferença em relação ao imposto sobre o cheque é que quem pagará tal tributo serão os viajantes abonados que adoram gastar — muito — no exterior. De acordo com o Senado Federal, o impacto sobre a arrecadação chegará a 80 bilhões de reais em dez anos. E, mais do que ser um recurso para manter as contas em ordem, a MP comprova que o governo mantém firme sua agenda silenciosa de transformação. “Paulo Guedes não busca, neste momento, realizar uma reforma global, mas faz pequenas alterações que efetivamente geram impactos”, afirma o advogado Gabriel Quintanilha, especialista em direito tributário.
Formado na prestigiada Universidade de Chicago, Paulo Guedes é um firme defensor do liberalismo radical. A mesma vertente foi encampada com fervor por Ronald Reagan, que governou os Estados Unidos, em dois mandatos, entre 1981 e 1989. A doutrina que aplicou em seu governo ganhou até um apelido, Reaganomics, que caracteriza uma batalha severa contra a inflação, a alta nos preços dos combustíveis, o baixo crescimento e os juros estratosféricos. Assim que assumiu o poder, o político que era conhecido por sua carreira como caubói canastrão em westerns dos anos 1950 determinou com uma canetada a liberação dos preços de óleo e gás, antes controlados pelo governo. O recurso utilizado, por meio de um ato administrativo, foi muito similar aos decretos que Guedes usa no Brasil e, apesar da histeria que se seguiu à medida, no prazo de doze meses o valor dos combustíveis havia caído 50% graças à livre concorrência. Além disso, a reforma fiscal, feita em boa medida à distância do Congresso, aliada a pesados cortes orçamentários, recolocou as finanças públicas do país nos trilhos. Com a política do republicano, os Estados Unidos saíram de um PIB em queda de 0,2%, em 1980, para uma economia que cresceu 4,2%, em 1989. “Os dois governos de Reagan foram marcados, principalmente, por uma profunda desregulamentação da economia americana”, explica Vinícius Franco, pesquisador da Fundação Getulio Vargas. “O problema é que os recursos que ele utilizou poderiam ser revertidos por um ocupante do cargo que não compactuasse com esse ideário, o que de fato aconteceu com Bill Clinton, em 1993.”
Diante de tanta turbulência na política brasileira, provocada desnecessariamente pelo próprio governo, é difícil enxergar com clareza para onde estamos indo. Mas a verdade é que as condições para a criação de um crescimento econômico sustentável estão postas na mesa, um trabalho que começou em 2016 e continua, dia a dia, com conquistas importantes. A inflação hoje está controlada, graças à atuação do Banco Central e das equipes econômicas de Michel Temer e Bolsonaro, que perseguiram com afinco a redução dos preços de alimentos, bens e serviços. Nesse período, tivemos também a aprovação da reforma trabalhista, o estabelecimento de um teto de gastos públicos e, depois de anos de tentativas infrutíferas, a reforma da Previdência. Com 400 bilhões de dólares em reservas cambiais, o Brasil desfruta hoje um cenário que combina inflação e juros baixos. Na quarta 11, o Comitê de Política Monetária decidiu reduzir a taxa Selic à mínima histórica de 4,5%. Portanto, as condições para a retomada do produto interno bruto (e previsões mais otimistas) estão dadas.
Evidentemente, não faltam obstáculos nessa trajetória — e a ausência de uma articulação política entre Executivo e Legislativo é um entrave importante. Desde a posse de Bolsonaro, a relação entre o governo e o Congresso nunca foi das melhores. As caneladas do presidente e os disparates autoritários do entourage governamental assustam e desagradam a grande maioria dos parlamentares, seja qual for o espectro ideológico. Da mesma forma, as lideranças do Senado e da Câmara, fundamentais na aprovação da reforma da Previdência, não parecem dispostas a colaborar com o mesmo vigor na implementação do restante da pauta econômica. E a aproximação das eleições municipais amplia ainda mais esse fosso. Na semana passada, a comissão mista responsável pelo Orçamento para 2020 aprovou o aumento de 1,8 bilhão para 3,8 bilhões de reais dos recursos disponíveis para as campanhas municipais do ano que vem. Foi uma derrota expressiva para o governo, que planejava disponibilizar apenas 2 bilhões de reais. Com a decisão dos parlamentares, as pastas de saúde, educação e infraestrutura sofrerão cortes em seu orçamento. Isso prova que as reformas silenciosas precisam continuar, mas não eximem o governo de melhorar sua interlocução com o Parlamento. A MP do Turismo, que ainda pode ser derrubada no Legislativo, deixou claro que a ideia de usar a CPMF para ancorar a reforma tributária segue firme na cabeça de Paulo Guedes, uma mudança que vai exigir um esforço hercúleo de negociação política. “Sem o imposto sobre pagamentos, vai ser difícil. Mas ninguém tem coragem de falar em CPMF por medo da reação que isso possa provocar”, diz um funcionário de alto escalão da Receita Federal. Com as medidas adotadas sob um tapume de discrição e engenhosidade administrativa, o governo tem conseguido alcançar resultados significativos — um trabalho que precisa e deve continuar. Mas, dada a grandeza da obra a ser erguida, nem tudo poderá ser feito dentro de casa. O governo tem de aprender rapidamente a incluir o Congresso nessa empreitada.
Com reportagem de Alessandra Kianek e Machado da Costa
Publicado em VEJA de 18 de dezembro de 2019, edição nº 2665