O peso da indexação: reajuste obrigatório atinge R$ 1 trilhão dos gastos públicos
RIO E BRASÍLIA - Os gastos públicos vão aumentar R$ 36 bilhões no ano que vem somente para repor a inflação deste ano, estimada em 3,4% pelo mercado. Após 25 anos de moeda estável, com o fim da hiperinflação, a chamada indexação ainda está presente nas despesas do governo. A equipe econômica do ministro Paulo Guedes defende que os gastos públicos tenham como referência apenas a previsão de receitas e não mais a inflação passada. Analistas são unânimes em afirmar que as contas públicas no Brasil são excessivamente engessadas. E a manutenção, pelo Senado, do abono salarial para todos os trabalhadores com carteira que ganham até dois salários mínimos, na aprovação da Reforma da Previdência em primeiro turno esta semana, vai comprimir ainda mais as despesas nos próximos anos.
Segundo a economista do grupo de conjuntura da UFRJ e professora da Coppead Margarida Gutierrez, 68% do gasto público são obrigatórios e reajustados anualmente pela inflação passada ou pela variação do salário mínimo. É quase R$ 1 trilhão: ao todo, gastos de R$ 950,218 bilhões do Orçamento deste ano sobem por inércia.
— Só com a aplicação da inflação, o gasto sobe R$ 36 bilhões em 2020. É bem mais do que o Bolsa Família (que atende a 13,8 milhões de famílias), que custa R$ 30 bilhões. Para o investimento, só sobraram R$ 19 bilhões. Esse modelo é a ausência da política fiscal.
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Crescimento vegetativo
Margarida Gutierrez lista as despesas públicas que sobem automaticamente no Orçamento da União. O salário mínimo é indexado ao Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC, que mede a inflação de quem ganha até seis salários mínimos), assim como as aposentadorias e pensões. A parcela mínima das despesas que é destinada à saúde e à educação também é reajustada anualmente pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA, índice que mede a inflação para quem ganha até 40 salários mínimos), assim como as emendas individuais e de bancada.
— Tem de ter prioridade dentro do Orçamento. Quando tudo é prioritário, nada é. Vivemos com moeda estável há 25 anos e temos que discutir esses mecanismos que foram criados e engessam o Orçamento. Há um crescimento vegetativo de gastos. Até mesmo as prioridades mudam, é preciso flexibilidade. A indexação é herança de um país que não existe mais, distorções que não estão mais presentes. Tirar amarras e acabar com essas heranças reflete o atual momento — afirma.
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Apesar de defenderem maior flexibilidade no Orçamento, analistas resistem à ideia de mexer no reajuste do salário mínimo. Eles afirmam que há outras rubricas no Orçamento que podem ser desindexadas, sem ter que enfrentar a dificuldade política de tirar da Constituição a obrigação de manter o poder de compra do piso salarial. Além disso, citam os especialistas, o salário mínimo cumpre um papel social. Segundo Fábio Klein, economista da Tendências Consultoria, cada real a mais no salário mínimo representa R$ 300 milhões nos gastos do governo. Mesmo assim, ele acha importante ter uma política de correção do piso:
— A preservação do poder de compra do salário é quase consagrada e prevista na Constituição. Repensá-lo não é trivial. Politicamente, não dar ganho real ao salário mínimo pode gerar atritos. Pode dar ganho real, mas ligado à produtividade — diz Klein.
Ana Carla Abrão, ex-secretária de Fazenda de Goiás e autora de uma proposta de reforma administrativa para a União, estados e municípios, também não vê espaço para tirar o ganho real do piso salarial:
— Não poria o salário mínimo no topo das prioridades. Temos de atacar gastos obrigatórios, privilégios, tem tanta coisa na frente. Podemos desindexar outros gastos, é uma boa discussão. Mas, de fato, a correção do mínimo gera efeito de segunda ordem, multiplicador, que não necessariamente faz sentido — diz a economista, que é sócia da consultoria global Oliver Wymann.
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De acordo com Ana Carla, a segunda maior despesa obrigatória é o salário do funcionalismo, que tem gatilhos que provocam um crescimento real, mesmo que os servidores não tenham os rendimentos recompostos pela inflação.
— A despesa de pessoal, mesmo que não se dê nenhum tipo de reposição da inflação, cresce 5%, 7% ao ano, por causa de mecanismos de promoções automáticos. As progressões automáticas geram aumentos salariais e a necessidade de novos concursos. As promoções muitas vezes deixam a atividade-fim descoberta, e as gratificações são incorporadas de forma permanente. Há um crescimento vegetativo, que vai além das indexações mais tradicionais.
Segundo Ana Carla, o gasto do funcionalismo da União, de estados e municípios responde por 13,1% do Produto Interno Bruto (PIB) no Brasil. É o dobro da média de outros países, afirma, citando como exemplo a Inglaterra, que destina 6% ao funcionalismo e tem sistemas públicos de saúde e educação, como o Brasil:
— Precisamos reduzir essa despesa para patamares minimamente aceitáveis. Estamos completamente fora do padrão. Os salários em algumas carreiras são completamente descolados dos da iniciativa privada.
O próprio Orçamento é indexado, mas para evitar que o gasto público crescesse acima da variação de preços. As despesas do governo aumentavam cerca de 6% ao ano, acima da inflação desde 1997. Pela lei do teto de gastos, de 2016, as despesas agora só podem subir no limite da inflação passada. Como despesas como as de Previdência e salários crescem acima da inflação, com a população envelhecendo e requerendo aposentadoria e os reajustes automáticos do funcionalismo, sobram menos recursos para outras despesas como investimento.
— Ao indexar as despesas à inflação passada, evitou-se que elas crescessem muito acima da inflação, como vinha acontecendo, resolvendo um problema que era pior — afirma Klein, da Tendências.
Inflação nas emendas
José Ronaldo de Castro de Souza Júnior, diretor de Macroeconomia do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), também é contra indexações e vinculações de despesas, mas considera muito difícil conseguir aprovar que o salário mínimo deixe de ser corrigido pela inflação.
— Há outras medidas que terão menos impacto nesse grupo populacional que recebe o mínimo. Pode-se desindexar o abono, as aposentadorias e pensões acima do mínimo, congelar salário de servidores, mas vimos que o Congresso aprovou novas indexações. As emendas de bancada, que eram vinculadas à receita, passarão a ser corrigidas pela inflação a partir de 2021.
Ana Carla diz que essa discussão está intimamente ligada à alta concentração de renda no Brasil, e a mudança na forma de gerenciar o Orçamento pode trazer essa discussão à tona.
— Temos que avançar na discussão sobre conflito distributivo. Todos esses dispositivos são concentradores de renda.
Impacto do abono: R$ 10 bi
A decisão do Senado de manter o abono salarial para trabalhadores que ganham até dois salários mínimos terá um impacto de R$ 76,4 bilhões em uma década, e esse gasto será crescente conforme o passar dos anos. A Casa suprimiu do texto da reforma da Previdência a parte que limitava o benefício a quem ganha até 1,3 mínimo, mantendo as regras atuais (até dois salários).
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Não haverá impacto em 2020, porque o abono é baseado nos meses trabalhados no ano anterior. Portanto, em 2020, os trabalhadores já teriam o direito adquirido. Essa é outra despesa indexada pela variação do salário mínimo. A conta começa a ser paga em 2021, R$ 3,8 bilhões, até chegar a R$ 10,5 bilhões em 2029. O cálculo considera a diferença em relação ao que seria gasto se o benefício tivesse sido limitado conforme proposto na reforma da Previdência.
— Os trabalhadores mais pobres, os que não têm carteira assinada, não têm direito ao abono. O benefício não está protegendo o mais pobre, é injusto. Deveria ser desvinculado da variação do salário mínimo — afirma a professora da UFRJ e da Coppead Margarida Gutierrez.
O abono funciona como um 14º salário para o trabalhador. Segundo contas do site Trabalho Hoje, feitas em fevereiro, 23,4 milhões de trabalhadores ganham entre 1,5 e 2 salários mínimos e seriam afetados se a mudança no abono, proposta na reforma da Previdência, fosse aprovada.