Faltava intriga. Não falta mais - VEJA
As desconfianças começaram ainda durante a campanha, quando o general Hamilton Mourão, então candidato a vice-presidente, sugeriu participar dos debates no lugar de Jair Bolsonaro, o cabeça da chapa, que se recuperava do atentado que sofrera. Suspeitando que Mourão tentava conquistar uma posição de protagonismo no cenário nacional, os filhos de Bolsonaro derrubaram a ideia no ato. Na montagem do governo, a relação entre o vice e a família Bolsonaro se esgarçou um pouco mais. Mourão queria assumir a função de coordenador da máquina administrativa, mas também acabou escanteado. A família presidencial fez questão de deixar claro que o seu papel era ser um vice com um perfil, digamos, decorativo. Ao fim do primeiro mês de governo, ficou claro que Mourão não se encaixa no papel de mero coadjuvante — e, por isso, já virou alvo preferencial de uma parte da artilharia bolsonarista.
Na história democrática brasileira, não são incomuns relações atritadas entre presidente e vice. Aconteceu com Fernando Collor e Itamar Franco, com Dilma Rousseff e Michel Temer. E, sempre, sem exceção, o antagonismo resulta em mirabolantes teorias conspiratórias — a tese mais amalucada da hora sugere que Mourão está acenando a setores estratégicos para tomar o poder das mãos de Bolsonaro. Eis o que disse o ex-astrólogo e filósofo Olavo de Carvalho, guru bolsonarista: “Estará o Mourão planejando livrar-se do Bolsonaro e usar a eleição dele como mera camuflagem para dar ares de legalidade eleitoral a um golpe militar?”.
A evidência da tramoia seria o fato de que Mourão tem defendido, em público, posições diferentes das do presidente. São mais moderadas e, assim, servem de contraponto ao radicalismo de Bolsonaro. Em que pese rusgas entre presidente e vice serem comuns, há um dado inédito na história de agora: a própria primeira-família da República alimenta a suspeita de conspiração.
Carlos Bolsonaro, o incansável Zero Dois, já chegou a escrever numa rede social que a morte de seu pai “não interessa somente aos inimigos declarados, mas também aos que estão muito perto”. Mourão era o sujeito oculto da mensagem. Recentemente, o presidente desistiu de tirar uma licença médica para se recuperar da cirurgia de retirada da bolsa de colostomia. Para não passar a caneta presidencial a Mourão, preferiu improvisar um gabinete no hospital Albert Einstein, em São Paulo.
Filiado ao nanico PRTB, Mourão não era a primeira, nem a segunda, nem mesmo a terceira opção de Bolsonaro para vice, mas acabou escolhido porque o então candidato avaliou que ele jamais conspiraria para assumir o poder. Também pesou a favor do general o fato de ter criticado o governo Dilma, quando estava ainda na ativa, e de defender o notório torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, ídolo dos Bolsonaro.
No exercício do governo, no entanto, presidente e vice foram se afastando. Enquanto Bolsonaro mantém seus discursos de campanha mais corrosivos, Mourão abre canais de comunicação com setores importantes da sociedade, inclusive o empresariado. Logo depois de eleito, Bolsonaro atacou a China, acusando o país asiático de querer comprar o Brasil. Mourão recebeu, em audiência oficial, uma delegação de autoridades chinesas. Não perdeu a pose nem quando veio a público a promoção fantástica, extraordinária, sensacional que seu filho recebeu no Banco do Brasil. Mourão também tem feito questão de demonstrar mais apreço à democracia do que Bolsonaro. Se o presidente não perde uma oportunidade de espicaçar a imprensa, o vice defende a liberdade de informar e mantém relação amistosa com jornalistas. Se Bolsonaro e sua prole festejam a decisão do deputado Jean Wyllys, ativista da causa LGBT no Congresso, de desistir do mandato e deixar o Brasil, o vice adota uma postura mais presidencial e trata as ameaças ao deputado como um crime contra a democracia.
Publicado em VEJA de 13 de fevereiro de 2019, edição nº 2621