Obras hídricas do Nordeste trazem esperança e causam transtornos
Eu morro e não vejo esse rio passar", profetizou o agricultor Valdevino Ferreira de Macedo, quando ouviu os primeiros boatos sobre a passagem do canal do Cinturão das Águas do Ceará (CAC) pelo Baixio das Palmeiras, no Crato, em 2010. Dois anos depois, ele faleceu, mas o projeto já havia causado sérios transtornos na comunidade rural, a pouco mais de 10 km da sede do Município. Por lá, ainda não foram iniciadas as obras que fazem parte do Lote 03 do Trecho 01, que vai de Jati a Nova Olinda, no trajeto do Projeto de Integração do Rio São Francisco (Pisf).
Apesar das duas obras serem esperança de garantia hídrica para o Ceará, as comunidades rurais que estão na rota desses empreendimentos atestam diversos impactos sociais e ambientais por onde passam. No distrito de Baixio das Palmeiras, por exemplo, a comunidade se organizou para discutir o elevado número de casas que seriam atingidas e além de exigirem audiências públicas e reuniões.
Tramitando desde 2009 nos arquivos da Secretaria de Recursos Hídricos (SRH), apenas em 2012, os moradores do Baixio das Palmeiras souberam que seriam afetados. Na época, segundo a comunidade, homens e tratores cortaram cercas e invadiram propriedades para fazer demarcações. Foi a própria Associação de Moradores que se encarregou de conseguir mais informações e promover debates com os técnicos da Pasta. Mas isso foi só o começo. Na manhã do dia 1ª de maio de 2014, o agricultor José Francisco Feitosa estava retirando alguns tijolos de sua casa quando a parede cedeu e o esmagou. "Eu estava no terraço quando ouvi aquele gemido. A parede estava em cima dele. Tiramos ele todo cortado, ensaguentado e levamos ao Hospital, mas não deu", lembra o agricultor Reginilton Ferreira Nobre. Apesar de ser socorrido, José não resistiu aos ferimentos e faleceu naquela noite. Antes do acidente, ele tinha sido um dos primeiros moradores indenizados no Baixio das Palmeiras, contudo, não havia recebido o valor suficiente para comprar um terreno e construir uma nova casa. Por isso, José teve que retirar o material do antigo imóvel, o que acabou causando sua morte. "O que ele recebeu não dava pra fazer tudo", justifica Reginilton.
Ainda no Baixio das Palmeiras, muitas pessoas continuam convivendo com incertezas sobre o futuro da comunidade. Desde que o "eixo emergencial" do CAC foi priorizado para levar água até o Açude Castanhão, as obras do Lote 03 não tiveram a mesma velocidade. Por isso, a própria família de Reginilton, que está no traçado do canal, mantém esperanças de continuar morando no local em que nasceram. "Até agora não tem notícia nenhuma. Eu espero que [a obra] não venha", pede.
Sua mãe, a aposentada Maria Ferreira, de 74 anos, está doente e com dificuldades de se locomover. Seu pai, Valdevino Ferreira, morreu antes de "ver o rio passar". Seus outros dois irmãos também têm problemas de saúde. "A pessoa vai pra onde? Sempre morei aqui. É muito ruim sair e ir pra outro canto procurar lugar pra comprar terra, fazer casa, sem ter estrutura, sem muito dinheiro. Não tem local adequado. É torcer que (a obra) não venha. Só vai trazer destruição e desgraça pra nós. Só vai acabar nosso Baixio", completa Reginilton.
Porém, com o chamado "eixo emergencial" do Cinturão das Águas pronto para levar água do Pisf até Fortaleza, a SRH assegurou que as obras do Lote 03 avançarão até o distrito de Baixio das Palmeiras até o fim deste ano. Serão desapropriados 53 imóveis, entre casas e terrenos: 35 na comunidade sede e 18 no Baixio do Muquém. A Pasta afirmou que cerca de 20 famílias já foram indenizadas.
Cadê a água?
Paralelo a isso, houve isolados conflitos em outras localidades do Cariri por conta do Pisf. Em Mauriti, no distrito de São Miguel, o principal impacto aconteceu com o aterramento da lagoa - cartão-postal da localidade. A água subterrânea foi toda "minada" para o canal. "Aqui, se cavasse três metros, já tinha água. Agora, o canal está como um dreno. Toda água vai para lá. Se cavar 20 metros não tem água", conta o agricultor Otoniel Alves.
Este problema fez com que os moradores entrassem com uma ação na Justiça, em 2015, para reparar os danos que a obra causou na irrigação de lá. Eles também fizeram protesto reivindicando que a construtora encanasse a água que foi drenada para dentro do canal e distribuída para o São Miguel, que possui cerca de 2 mil habitantes. O pedido foi atendido. Por outro lado, uma ponte que seria feita em frente ao sítio de Otoniel não foi construída, obrigando o agricultor a caminhar 8 km para cuidar do gado. Vizinho ao canal do Pisf, o sítio também começou a sofrer com alagamentos no ano passado.
Nas primeiras chuvas, a água atingiu 50 cm dentro de casa, porém, fora dela, a altura foi muito maior, e o agricultor acabou perdendo o gado, que morreu afogado. "Nunca tinha acontecido isso" descreveu um trabalhador. O Ministério do Desenvolvimento Regional - que assumiu a obra após o Ministério da Integração Nacional ser extinto - afirmou que visitou a comunidade de São Miguel por meio do programa Comunicação Itinerante na Zona Rural. Na oportunidade, esclareceu dúvidas, informou sobre o empreendimento e registrou demanda dos moradores
Andamento
Hoje, o Eixo Norte da Transposição, que atenderá Ceará, Paraíba e ao Rio Grande do Norte, apresenta 97% de avanço físico. Todas as grandes estruturas para conduzir a água aos estados beneficiários estão prontas - estações de bombeamento, túneis, aquedutos, canais. No entanto, um vazamento detectado no dique da barragem de Negreiros, em Salgueiro (PE), no último dia 16 de agosto, atrasou a entrega da obra, prevista para o fim do ano passado. Com os trabalhos concluídos, as águas chegarão à barragem de Jati, no município homônimo, seguindo pelo "eixo emergencial" do CAC até o Riacho Seco, em Missão Velha.
De lá, percorrerá o Rio Salgado até desaguar no Rio Jaguaribe, fluindo para o Açude Castanhão - responsável pelo abastecimento da Região Metropolitana de Fortaleza. As águas do "Velho Chico" já avançam em 80 quilômetros desta etapa, atendendo 12 mil moradores rurais de Cabrobó e Terra Nova, em Pernambuco. O Ministério garantiu a conclusão da obra no primeiro semestre de 2019 e o início das operações no segundo semestre. Quando finalizada, vai beneficiar 7,1 milhões de nordestinos. DIARIONORDESTE