Armas de fogo mataram 600 mil pessoas no Brasil desde 2001
RIO — Ao tornar mais fácil o acesso às armas de fogo, o governo federal trouxe para o debate um tema que apresenta números tão expressivos quanto alarmantes. Entre 2001 e 2016, segundo dados do Ministério da Saúde, quase 600 mil pessoas — 595.672 — morreram no país vítimas de disparos, o que representa 70% do total de homicídios no período. Os números de 2017 e 2018 ainda não estão disponíveis, mas farão esse índice superar os 600 mil.
São, em média, 37.229 assassinatos por armas ao ano — ou um a cada 14 minutos. Assim como acontece com o número total de homicídios, a curva das mortes causadas por armamentos é crescente há décadas. O ritmo de aumento, no entanto, tem um recorte definido. Entre 1996 (primeiro ano da série histórica do ministério) e 2003 (último ano antes de o Estatuto do Desarmamento entrar em vigor), a taxa média de subida foi de 6,7%. De 2004 a 2016, a curva desacelerou: a média do período foi de 1,7%.
Em dezembro de 2017, o documentário “A Guerra do Brasil”, do GLOBO, mostrou que, de 2001 a 2015, o país registrou 786.870 homicídios, número maior que o de mortes das guerras do Iraque, Síria e dos atentados terroristas no período.
Um estudo do sociólogo Júlio Jacobo, especialista em segurança pública, estima que, até 2014, a legislação que provocou a retirada de armas de circulação evitou 133.987 mortes. O presidente Jair Bolsonaro defende uma tese oposta: segundo ele, o aumento contínuo de homicídios é a prova de que a política desarmamentista fracassou.
No Brasil todo, as mortes por armas de fogo cresceram 33% no século 21 (2001 a 2016). Há oito unidades da federação com estatísticas abaixo da nacional, das quais seis reduziram os casos nesse intervalo de tempo: São Paulo, Rio, Mato Grosso do Sul, Pernambuco, Espírito Santo e Distrito Federal. Rondônia e Mato Grosso apresentaram crescimentos de 24% e 29%, respectivamente.
Na outra ponta, 19 estados tiveram um desempenho ainda mais preocupante que o do país como um todo. No Maranhão, as mortes por armas de fogo explodiram (681%). À exceção de Pernambuco, em todos os estados do Nordeste os assassinatos por armas, no mínimo, dobraram. Em Sergipe, 86% dos homicídios são cometidos com uso desse equipamento letal, enquanto em Alagoas o índice é de 85%. O aumento da violência na região e no Norte do país impulsionou os dados nacionais. Em 2001, as mortes provocadas por armamentos nas duas regiões representavam 26% do total do país. Quinze anos depois, o peso no índice nacional passou a ser de 55%.
A expansão de facções do crime organizado do Rio e de São Paulo e o fortalecimento de organizações criminosas locais — e as consequentes disputas por territórios — são apontadas como as principais razões para a explosão de violência no Norte e no Nordeste, cujo exemplo mais recente são os ataques no Ceará.
Por outro lado, em São Paulo, os assassinatos por armas de fogo caíram 74% no período — no Rio, a queda foi de 34%, apesar de um crescimento recente de 26% entre 2015 e 2016. O Sudeste concentrava 57% das mortes por armas de fogo no país em 2001 — hoje registra 24%.
O decreto assinado por Bolsonaro na terça-feira tirou a obrigação de a Polícia Federal determinar se um cidadão tem a “efetiva necessidade” de adquirir o direito à posse de arma, o que era criticado pelos defensores de uma legislação menos restritiva por dar um caráter subjetivo às autorizações. O novo texto estabelece que a “efetiva necessidade” já está comprovada para os residentes em áreas rurais e centros urbanos com taxas de homicídios superiores a 10 por 100 mil habitantes — na prática, todos os cidadãos brasileiros acima de 25 anos e sem antecedentes criminais têm direito à posse, desde que sejam aprovados no teste psicológico e no curso de manuseio do armamento.
O ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, que participou da elaboração do decreto, defendeu a tese de que o crescimento contínuo dos homicídios indicava a necessidade de uma mudança na política para as armas de fogo. Ele se mostrou reticente, no entanto, quanto à flexibilização do porte — permissão para andar armado na rua —, item que o presidente já anunciou que pretende debater depois que voltar do Fórum Econômico Mundial, em Davos.
— Se a política de desarmamento fosse tão exitosa, o que seria esperado era que o Brasil não batesse, ano após ano, o recorde em número de homicídios — disse Moro, em entrevista à GloboNews.
Há evidências acadêmicas que apontam no sentido oposto. Na sexta-feira, O GLOBO mostrou que o aumento de crimes em decorrência da maior circulação de armas de fogo é praticamente consenso na comunidade científica. Um estudo do economista Daniel Cerqueira, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), mostra que o crescimento de 1% de armas de fogo pode aumentar em até 2% a taxa de homicídios, além de não ter efeito sobre os crimes contra a propriedade. Outro argumento usado pelo governo é o de que os roubos a residências diminuiriam, pois os criminosos evitariam o risco de entrar em um imóvel, sabendo que poderia haver armamento no local — o decreto permite a posse de até quatro armas.
— As pesquisas apontam muito mais para um aumento da incidência criminal (com mais armas de fogo em circulação). Sobre a questão da legítima defesa, o que sabemos é que, quando existe uma disputa entre os criminosos e as vítimas, geralmente as vítimas levam desvantagem, inclusive com os bandidos se apossando das armas — avalia o sociólogo César Barreira, coordenador do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará.
Comércio ilegal
O sociólogo Ignácio Cano, do Laboratório de Análise de Violência da Uerj, acrescenta um outro ponto: o incremento do mercado ilegal de comércio de armas de fogo.
— A facilitação do acesso vai fazer com que as armas fiquem mais baratas no mercado paralelo. Então não serão só os “cidadãos de bem” que vão conseguir armamento. Vai facilitar para todo mundo e aumentar a letalidade — aponta o sociólogo. — Muitos policiais morrem quando estão de folga, reagindo a tentativas de assalto. Se eles, que são treinados, muitas vezes não conseguem sobreviver, imagina o cidadão comum. O GLOBO