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Negociação ou negociata - Ana Maria Machado é escritora

É notório que o ex-jogador Júnior é mangueirense. Sua presença no desfile da Mangueira não surpreendeu ninguém. Mas, poucas horas antes, ele já tinha desfilado pelo Salgueiro, concorrente direto de sua escola. Ninguém pensaria em agredi-lo por causa disso. Afinal, no futebol que constituiu toda a sua vida profissional, o supercampeão já aprendera esse princípio básico que possibilita o esporte e tantas outras criações coletivas da humanidade: adversário não é desafeto. Ao sair no Salgueiro, Júnior não estava traindo nada nem ninguém. Só confirmava seu respeito à força do samba, à amizade, a suas raízes e à cultura em que fomos criados. Paulinho da Viola, com o sangue azul da Portela a correr em suas veias, rio que passa em sua vida e leva seu coração, não ficou menos portelense ao incluir em seu repertório um clássico como “Sei lá, Mangueira”, em antológica gravação. E numa partida internacional, um jogador do Flamengo que esteja na seleção brasileira passa a bola para um jogador do Vasco fazer gol. Sabe que naquele momento o objetivo envolve algo maior.

Nesta tremenda crise brasileira de estagnação, está nos faltando a capacidade de deixar em segundo plano a paixão individual quando se trata de uma causa maior. Os tempos recentes treinaram os eleitores a só ter como alvo a obtenção ou a manutenção do poder, esquecendo o bem do país. E esse poder é visto como fonte de benesses, não como a possibilidade de fazer algo bom. Passa-se a ver o adversário como inimigo ou concorrente na boquinha, e então é preciso se atirar à mesa farta, mesmo ao risco de se lambuzar muito. Em relação aos concorrentes, o objetivo passa a ser esmagá-los a qualquer preço, mesmo que se tenha que mentir, difamar, agredir. Isso torna muito difícil encontrar saídas conjuntas — ainda que tenham sido eventualmente sugeridas enquanto continuamos atolados no lamaçal.

O resultado é o descrédito, que gera desesperança. E sem dialogarmos não vamos sair disso. Mas diálogo implica ouvir, se dispor a ceder aqui e ali, elaborar em conjunto. Se o governo finalmente, depois de anos de teimosia e de se recusar a ver essa evidência, reconhece que é necessária uma reforma da Previdência, por que a oposição tem de estabelecer condições prévias para admitir seu apoio? É urgente. Então que se apoie e comece a negociar os pontos específicos. Talvez até se possa melhorar a proposta.

Podíamos começar clareando certos termos. Por exemplo, esse verbo negociar. Não se confunda negociação e negociata, são bem diferentes. Negociata é fazer negócio, trocar vantagens, pressupõe beneficio próprio. É da família semântica de roubalheira, falcatrua, maracutaia, pilantragem. Muito diferente de negociação, um processo que está no cerne da atividade política, na busca de equilíbrio entre as ideias prévias de cada lado e a consideração dos fatos que se impõem, apontando para a busca de consensos e o aperfeiçoamento das instituições.

Podemos clarear outros conceitos, por vezes repetidos automaticamente. Receber doações de empresas, por exemplo. Até a eleição passada, não era ilegal, desde que cumprisse a legislação eleitoral vigente. Nenhum problema com isso. O problema é quando a chamada doação vira pagamento por favores recebidos ou a receber, em uma legalidade apenas de fachada. Principalmente quando o dinheiro era oriundo dos cofres públicos, por meio de superfaturamento ou concorrência com cartas marcadas e, maquiado de doação, é lavado pelo Tribunal Eleitoral. Ou quando esse “adiantamento” será retribuído mais adiante em contratos futuros, desonerações seletivas ou medidas provisorias que vão beneficiar o pretenso “doador”.

Ter conta no exterior também não é crime — se for devidamente declarada à Receita, e os recursos que a constituem tenham pago os impostos correspondentes. O mesmo vale para se ter um sítio ou um apartamento. Caso contrario, vira ocultação de patrimônio, pelo menos. E se alguém cedeu um imóvel para uso de um amigo, a lei também exige declarar e pagar imposto, se não se tratar de cônjuge ou parente direto em primeiro grau. São fatos a considerar.

Política não é bate-boca, é diálogo. Requer discernimento, capacidade de avaliar as circunstâncias, levar em conta o conjunto da situação. Sua distorção prejudica toda a sociedade. O que se revela muito grave hoje é constatar que o objetivo dessas “doações” não era só financiar campanhas, era se servir delas para manter no poder o mesmo grupo, sem brecha para quem não fosse dos quadros, sem chance de alternância, com um sistema aparelhado. Uma prática que, além de irrigar com dinheiro público uma patota privilegiada, desrespeita a discordância, reduz o dissenso, limita a liberdade de opinião, cerceia a democracia. Esse é seu aspecto politico mais execrável, por antidemocratico, além de imoral. Basta ver quantos ótimos quadros, ao longo do tempo, deixaram o partido que traiu seu sonho. Seus escrúpulos serão golpe?

Estamos precisando de mais negociação e menos negociata.

Ana Maria Machado é escritora




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