Fisco viola Constituição ao cobrar dados de movimentações acima de R$ 2 mil
Como sabido, há alguns anos o Senado Federal impossibilitou a continuidade da cobrança da CPMF, que possibilitava à Receita Federal o controle do numerário destinado aos cofres públicos, inibindo o chamado “caixa dois”. Com o fim da CPMF, portanto, o governo federal se viu vulnerável ao retorno daquela prática (caixa dois), potencialmente abolida com o chamado “imposto do cheque”.
Pretendendo impedir ou dificultar a ação de sonegadores, primeiramente o Poder Executivo editou, em 27 de dezembro de 2007, a Instrução Normativa RFB 802/2007, determinando que as instituições financeiras informassem à Receita Federal os dados relativos a todas as pessoas físicas e jurídicas que movimentarem valores superiores a R$ 5 mil e R$ 10 mil, respectivamente, por semestre, em conta corrente ou poupança. Agora, a Receita Federal editou nova normativa da mesma estirpe: trata-se da Instrução Normativa 1.571, de 2 de Julho de 2015, alterando-se apenas os valores, que passam a ser de R$ 2 mil e R$ 5 mil mensais para pessoas físicas e jurídicas respectivamente.
Entretanto, as referidas instruções normativas, que segundo a própria Receita estão embasadas na Lei Complementar 105/2001, regulamentada pelo Decreto 4.489/2002, caracterizam evidente quebra de sigilo bancário, afrontando a Constituição Federal.
Isso porque, a Constituição Federal, ao tratar de direitos e garantias individuais, dispõe nos incisos X e XII, do artigo 5º, que:
“X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; (...);
XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”.
Não há dúvida de que todos esses valores considerados pela Magna Carta se interligam com o sigilo de dados e informações, onde se encontra, também, o sigilo bancário.
Aliás, o próprio artigo 1º da Lei Complementar 105/2001, atribui às instituições financeiras o dever de conservarem sigilo em suas operações ativas e passivas e serviços prestados, salvo um número bem restrito de operações, que estão ligadas mais em razão da proteção do crédito e da sociedade.
Por sua vez, o artigo 6º daquela lei só permite que as autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios examinem documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclusive os referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso, e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente.
Apesar do teor restritivo da LC 105/2001, o Decreto 3.724/2001 que regulamenta o seu artigo 6º (da LC 105/2001) e o Decreto 4.489/2002 que regulamenta aquela Lei, ampliaram as possibilidades de serem reveladas as informações bancárias cujo sigilo é garantido pela Constituição Federal, o que não se pode admitir.
Ora, se o artigo 6º, da LC 105/2001, é expresso ao dispor que os agentes fiscais tributários só poderão ter acesso aos dados bancários quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e o exame desses dados forem considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente, não se pode admitir outras exceções que, a pretexto de regulamentação, acabam por alterar aqueles limites e condições.
No entanto, o Decreto 4.489/2002 estabelece que as instituições financeiras “devem prestar à Secretaria da Receita Federal do Ministério da Fazenda informações sobre as operações financeiras efetuadas pelos usuários de seus serviços, sem prejuízo do disposto no artigo 6º da referida Lei Complementar” (art. 1º).
Nota-se, portanto, que embora a LC 105/2001 exija a existência certos requisitos (processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e a indispensabilidade dos dados bancários para a fiscalização), pelo Decreto 4.489/2002 a prestação das informações pelas instituições financeiras deve ser constante e imotivada.
Assim o é, também, pelas Instruções Normativas, que se amparam no Decreto 4.489/2002, determinando as instituições financeiras o dever de prestar informações mensais, na forma e prazos estabelecidos pela Secretaria da Receita Federal relativas a cada modalidade de operação financeira em que o montante global movimentado em cada mês seja superior a R$ 2 mil para pessoas físicas e R$ 5 mil para pessoas jurídicas, sem que estejam presentes os requisitos acima mencionados.
Assim, com a cessação da vigência da Lei 9.311/96, que instituiu a cobrança da CPMF, donde se previa, também, a obrigação legal paras as instituições financeiras prestarem informações acerca das movimentações de operações dos administrados, qualquer ato administrativo que venha a criar tal obrigação, padece de vício de inconstitucionalidade.
Dessa forma, pode-se concluir que:
a) O sigilo bancário é protegido pela Constituição Federal.
b) A LC 105/2001 não autoriza a requisição de informações bancárias nos moldes do estabelecido pelas Instruções Normativas.
c) Pelo artigo 6º da LC 105/2001, os agentes fiscais tributários só podem acessar dados bancários quando houver o respectivo processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso, sendo o exame desses dados indispensáveis pela autoridade administrativa competente.
d) Não se pode admitir que as Instruções Normativas, sob o pretexto de regulamentar a LC 105/2001, modifiquem seus limites e condições para facilitar o acesso a informações sigilosas, eis que se tratando de regulamento, não podem inovar o ordenamento jurídico.
e) Ao permitir a prestação de informações de qualquer modalidade de operação, a Instrução Normativa permitirá a abertura do sigilo bancário de forma ampla e irrestrita, contrariando norma de índole constitucional, pelo que padece de evidente inconstitucionalidade.
Por fim, cumpre ressaltar que não se pretende com este ensaio fazer prevalecer a sonegação fiscal e outros meios e elisão de tributos, mas o que não se pode admitir é que se edite normas regulamentares em descompasso com a lei e com a Constituição Federal.
Ricardo Hiroshi Botelho Yoshino é advogado e especialista em Direito Tributário.
Revista Consultor Jurídico, 13 de fevereiro de 2016