Em quem e como votar?
Não há nada pior no Brasil do que não saber com quem se está falando. Aqui nós não nos apresentamos, somos apresentados e logo viramos amigos de infância. Nos Estado Unidos, usam-se etiquetas, coisa impensável num país de celebridades esquecido de sua uma matriz aristocrática, patriarcal e escravocrata atada, porém, a uma república de raros republicanos.
A impessoalidade nos ofende porque somos obrigados a saber com quem falamos. Quando saímos de nosso segmento, sofremos o desconforto de viver o mal-estar imposto por um individualismo tocado a liberdade com igualdade. Entre nós, a democracia é desejada, mas a sua alma igualitária é um problema. Como viver num lugar no qual o não saber o seu lugar é um direito?
Como e em quem votar sem o rumo das segmentações tradicionais? Não seria um absurdo permitir tantos presidenciáveis? Se o presidente é o “supremo mandatário da nação”, e não a encarnação republicana no seu desejo cívico, e se ele reina e fica acima das leis, como votar em sujeitos sem linhagem?
Vivemos desilusões. O que tipifica a maioria das promessas eleitorais é o milagre de dissolver a calamidade promovida pelo governo com o uso do seu outro lado: o Estado. Essa é a matriz que o centrão, o esquerdão e o direitão oferecem ao eleitorado. As “esquerdas” e o “centro” vão da receita razoável às utopias sem as quais nem os governados por Donald Trump conseguiriam tocar a vida. No lado da “direita” — esse setor que os cientistas políticos garantiam ser básico numa democracia —, entretanto, há promessas de retornos indesejáveis porque nenhuma ordem democrática pode se realizar pregando o preconceito de raça e de gênero e o cerceamento de adversários rotulados como “comunistas”. Politica é ponte. Não pode voltar a ser o caminho da censura, do medo e do patíbulo. A mentira, a hipocrisia, o compadrio ladravaz (de sangue, partido ou ideologia) — esses irmãos da corrupção e do radicalismo — são, vale lembrar Durkheim, inexoráveis desde (nota bene) que jamais sejam transformados em ideais ou valores. Todos morreremos, mas não transformamos a morte em programa. Todos mentimos, mas não escolhemos a mentira com tamanha determinação, como fazemos neste Brasil adormecido por ilusões ideológicas.
Tenho sido chamado de conservador e, mais recentemente, de homofóbico e golpista, simplesmente porque na minha obra tenho desmistificado a idealização do Estado como um instrumento fundamental e, para muitos, exclusivo de bem-estar social. Nosso salvacionismo está obviamente acasalado a pessoas (Pedros, Getúlio, Jânio, JK e Lula) mas, embora pessoal, ele exige a posse do aparelho estatal. A chamada revolução por dentro produz um resultado bem conhecido: ela dissolve as fronteiras entre Estado e governo. Se o Estado tem permanência, os governos passam, mas é precisamente a ausência desta dinâmica que as ideologias embaralham no Brasil. Quando governo e Estado culpam-se e liquidam-se entre si, entramos nesse buraco da fechadura sem a chave. Mas, mesmo assim, aprendemos muito sobre os limites das ideologias.
Hoje sabemos que quanto mais impessoal, rígido e distante é o Estado, mais personalista e complacente será o governo. A malandragem, o jeitinho e o “sabe com quem está falando” não têm, como querem os ignorantes, origem étnica. São, isso sim, o fruto de um Estado patologicamente fiscalizado acima de tudo com seus inimigos, mas leniente e corrupto com seus aliados.
Um Estado rigidamente ideológico leva à ironia das práticas pessoais e ao culto de personalidade. Seu velho axioma d a lei para os inimigos e tudo para os amigos esgotou-se. Num mundo digital e dotado de tecnologias de transparência, é muito difícil mentir, ocultar e operar dissimuladamente, por meio de múltiplas éticas. O que hoje se demanda é um dialogo menos antagônico e mais confiável entre Estado e sociedade. É exatamente isso que vai permitir votar sabendo em quem se está votando.
O GLOBO / Roberto DaMatta