Cirurgia, isenção e voto
Um dos autores clássicos da literatura política, Victor Nunes Leal (1914-1985) apontou a centralização arbitrária como uma das características definidoras dos municípios brasileiros. A vida da cidade é o espaço de manobra do poder local. No cultuado Coronelismo, enxada e voto, demonstrou como os detentores do poder político-econômico interferem nos resultados eleitorais e os adulteram — usando meios que, por vezes, contornam os obstáculos legais, mas não deixam de ser imorais.
Coronelismo, na visão de Leal, não é simplesmente um fenômeno da política local nem se limita a mandonismos. É, na realidade, o exercício de poder em que o “coronel” — seja prefeito, governador ou presidente — se fortalece e se perpetua num jogo de cooptação e coerção. O coronel e seus correligionários ocupam territórios e usam a máquina pública em defesa de interesses privados. Dizem servir o Estado, mas, na realidade, servem-se dele.
Exemplar nesse aspecto foi a revelação do repórter Bruno Abbud, publicada em O Globo nesta semana, de que o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, instou pastores e religiosos evangélicos a oferecerem serviços públicos como moeda de troca eleitoral e proselitismo. No encontro, Crivella ofereceu ajuda para encaminhar fiéis a cirurgias e para agilizar processos de isenção da cobrança de IPTU das igrejas. Apontou ainda um pastor candidato a deputado federal por seu partido como merecedor do voto dos evangélicos para “dar jeito nesta pátria”.
Abespinhado, o prefeito negou favorecimento e disse que teve apenas o objetivo de prestar contas de sua gestão e apresentar aos presentes programas sociais da prefeitura, como cirurgias de catarata, varizes e vasectomia. Não é o que se depreende ao ouvir-se a gravação do encontro do prefeito com as lideranças amigas.
O comportamento de Crivella não terá surpreendido aqueles que acompanham sua prática política, marcada pelo assistencialismo nem sempre seguidor das regras republicanas da impessoalidade e da transparência. Não deixa de ser espantoso, no entanto, que aja tão desbragadamente em defesa dos interesses próprios, de seu partido e da igreja à qual se vincula.
Em reação ao prefeito, vereadores de oposição conseguiram as 17 assinaturas para suspender o recesso da Câmara Municipal e analisar os pedidos de impeachment contra o chefe do Executivo municipal. Se o pedido entrar em votação, a oposição precisaria duplicar o número de apoiadores, porque a admissibilidade do impeachment necessita de ao menos 34 dos 51 votos dos vereadores.
A prudência e o histórico do comportamento da maioria dos vereadores recomendam cautela pessimista a respeito da tramitação do pedido de impeachment e da investigação das arbitrariedades do prefeito. A esperança de práticas melhores, entretanto, se alimenta de pequenos atos e pequenas vitórias.