Duas falsas narrativas
SERGIO FAUSTO*, O Estado de S.Paulo
19 Novembro 2017 | 03h00
Na disputa político-eleitoral brasileira se destacam, até o momento, duas narrativas. Ambas falsas. De um lado, a vitimização de Lula. De outro, a normalização de Bolsonaro. A primeira consiste em transformar o ex-presidente em alvo de uma conspiração armada pelas “elites” para levá-lo à condenação judicial e à inabilitação eleitoral. “Elites”, como sabemos, é uma figura de retórica deliberadamente imprecisa com a qual o PT joga segundo as suas conveniências (não me lembro de o termo ter sido empregado para designar empreiteiras ou frigoríficos amigos do rei). A segunda narrativa reside em travestir de liberal convicto um político notório por declarações e projetos de lei que nada têm que ver com o liberalismo, nem econômico, muito menos político.
Tanto uma narrativa como a outra respondem a cálculos político-eleitorais perfeitamente racionais do ponto de vista dessas candidaturas. Se prosperarem, ambas causarão grave dano ao País.
Estou convencido de que, ao fim e ao cabo, Lula será barrado pela lei das inelegibilidades, que proíbe a candidatura de indivíduos com a “ficha suja”, ou seja, condenados em segunda instância por crimes previstos na Lei Complementar 135/2010, entre eles os de corrupção, lavagem de dinheiro, etc. As lideranças do PT devem saber disso. Apostam na candidatura de Lula porque ela é a única capaz de manter a perspectiva da volta rápida do partido ao poder. Trata-se de uma ilusão necessária, sem a qual a crise e as divisões do partido se aprofundariam. Mais ainda, nessa linha de raciocínio, a transmutação de Lula em líder proscrito atende aos interesses de conservação do PT a prazo mais longo. Partidos, assim como as nações, necessitam de mitos que permitam produzir sentido de pertencimento e coesão entre seus membros, sobretudo quando confrontados por dissidências internas ou ameaças externas (neste caso, o castigo eleitoral).
Mesmo sem levá-lo de volta ao poder agora, a vitimização de Lula poderá ajudar o PT a conservar a sua unidade, a manter parte de sua força de atração sobre outros partidos e grupos de esquerda e a preservar algo de sua conexão com o eleitorado “lulista”, maior que o petista. Ao menos é no que parecem crer e apostar os dirigentes do PT, pouco dispostos aos riscos da autocrítica e da renovação partidária. Mal comparando, o objetivo último dessa estratégia é converter o lulismo num peronismo tropical. O defeito da comparação, indicativo do caráter farsesco da narrativa, é que Perón foi de fato apeado do poder por um golpe de Estado, em 1955, e proscrito da vida política argentina por quase 20 anos. Nada semelhante aconteceu aqui.
Não creio que a estratégia petista venha a produzir os frutos pretendidos. Mas fará estragos no meio do caminho. O mais grave será pôr em xeque a independência do Poder Judiciário e, por essa via, a legitimidade do regime democrático. Chegará o partido ao ponto de não reconhecer o(a) presidente(a) eleito(a) em outubro de 2018 se Lula for legalmente impedido de disputar as eleições? Promoverá uma campanha internacional de denúncia sobre a suposta ilegitimidade das eleições presidenciais brasileiras, o que seria risível, não fosse perturbador, dado o apoio do PT às arbitrariedades do governo Maduro? Como se não bastasse, a vitimização de Lula dificultará ainda mais a necessária criação de uma necessária força de esquerda, democrática e não populista, capaz de destilar a experiência do PT e (re)lançar-se na política brasileira.
Passemos a Bolsonaro, que merece menos parágrafos por sua menor relevância. Ele é sintoma do medo que se disseminou pelo Brasil, sentimento em parte derivado de fatores reais, em parte instrumentalizado para provocar pânico na sociedade e assim gerar dividendos políticos em favor de uma agenda ultraconservadora.
O apoio pré-eleitoral ao deputado não reflete apenas a deterioração das condições de segurança pública. Os que o apoiam se sentem ameaçados também pelo que consideram perturbações de uma ordem tradicional idealizada. O que os une é a adesão à truculência na área da segurança pública e à reação a mudanças no plano do comportamento (parte delas refletidas em direitos, como o casamento gay). Bolsonaro sustenta orgulhosamente uma agenda reacionária em relação às drogas (não distinção entre pequenos consumidores e traficantes), à liberdade de expressão (cerceamento, em nome dos bons costumes) e à definição de família (restritiva dos direitos dos homossexuais). Defende armar a população e criar a figura penal da legítima defesa do patrimônio para inocentar quem cometer homicídios para proteger bens de sua propriedade. Quer abrir definitivamente as portas ao faroeste caboclo, na cidade e no campo.
É esse personagem, que fez elogio a um conhecido torturador, abundou sempre em declarações homofóbicas e sexistas e se disse favorável ao fuzilamento do então presidente Fernando Henrique Cardoso por causa da privatização de empresas estatais, é esse personagem, repito, que pretende apresentar-se agora com os trajes de um adepto do liberalismo. Nessa operação transformista conta com a assessoria de alguns economistas, de pouca importância, é verdade, e com certa complacência do chamado “mercado”. Essa complacência mostra como o liberalismo econômico, quando desacompanhado do liberalismo político, corre o risco de perder a bússola democrática e cair no colo de forças políticas de extrema direita.
A “normalização” de Bolsonaro se alimenta do espectro que ronda o horizonte eleitoral, Lula, e, sobretudo, da incapacidade que as forças de centro têm demonstrado para se articular em torno de uma candidatura e de um programa para 2018.
As narrativas da esquerda populista e da direita truculenta são falsas. Mas ao menos elas têm uma. O centro precisa elaborar a sua. Antes que seja tarde.
* SERGIO FAUSTO É SUPERINTENDENTE EXECUTIVO DA FUNDAÇÃO FHC, COLABORADOR DO LATIN AMERICAN PROGRAM DO BAKER INSTITUTE OF PUBLIC POLICY DA RICE UNIVERSITY, MEMBRO DO GACINT-USP