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Adiar eleição abre precedente perigoso

Por  Editorial / O GLOBO

 

Enquanto o Rio Grande do Sul conta mortes e prejuízos das enchentes que afetaram 90% de seus municípios, pode parecer prematuro discutir o adiamento das eleições para prefeito e vereador marcadas para 6 de outubro. Mas o debate é inexorável devido ao tempo exíguo para tomar as decisões. O calendário eleitoral já está aí. Em junho, começa a pré-campanha. No mês seguinte, entre 20 de julho e 5 de agosto, partidos e federações realizarão suas convenções. A propaganda começa em 16 de agosto.

 

Entre os políticos, não há consenso. “Ainda é um pouco cedo, mas também não vai poder retardar muito a discussão. Junho já é momento pré-eleitoral, e em julho se estabelecem as convenções”, afirmou ao GLOBO o governador gaúcho Eduardo Leite (PSDB). Ele argumenta que a troca de governo nos municípios e o próprio debate eleitoral podem atrapalhar a reconstrução. O prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), é mais reticente. Diz que um eventual adiamento precisa ser avaliado com critério, apenas quando tiver passado o auge da catástrofe e for possível avaliar seus impactos. O presidente do PL gaúcho, Giovani Cherini, defende o reagendamento do pleito para o primeiro semestre de 2025, depois que a população voltar para suas casas. Outras lideranças gaúchas são favoráveis ao adiamento argumentando que muitos locais de votação, como escolas, foram destruídos e que não há ambiente para a campanha eleitoral.

 

Não é possível ignorar a situação dos gaúchos. Mais de 600 mil moradores tiveram de deixar suas casas — muitas já nem existem. Quase 60 mil foram acolhidos em abrigos. Muitos saíram com a roupa do corpo. Perderam móveis, eletrodomésticos, documentos, tudo. Estradas e pontes estão destruídas, dificultando o transporte. Mesmo quem voltar depois de a água baixar levará meses para retomar a rotina. Sem falar no trauma psicológico.

 

Apesar de tudo isso, adiar uma eleição não é medida trivial. Caso envolva também a permanência dos atuais mandatários no cargo, abre precedente perigoso numa democracia, em que a duração fixa dos mandatos está na essência da alternância no poder. Para isso, seria necessário aprovar uma emenda à Constituição no Congresso, como foi feito durante a pandemia em 2020. Só que, naquele caso, foi adiada apenas a data do pleito, por algumas semanas. A única justificativa plausível para o adiamento desta vez seria a absoluta impossibilidade logística de realizá-lo. Mas parece evidente que quatro meses são tempo mais que suficiente para superar os atuais obstáculos.

 

Ao contrário do que argumentam os defensores do adiamento, a eleição municipal neste momento de reconstrução poderá ter papel importantíssimo para a população. Os candidatos precisarão apresentar objetivamente seus planos para que as cidades não voltem a ser arrasadas pelas águas, comprometendo-se com medidas robustas de adaptação, negligenciadas até agora.

 

A devastação mostrou que todos fracassaram. Será preciso falar também em reconstrução, reassentamentos, construção de moradias. A população ainda traumatizada pelo luto e pela destruição sem precedentes poderá usar esse debate fundamental para superá-los. O tempo é curto. O adiamento, pela essência do princípio democrático, deveria ser cogitado em último caso, apenas para as situações excepcionalíssimas em que persistir a impossibilidade prática de realizar o pleito.

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