As piruetas retóricas de Lula
21 de outubro de 2022 | 03h00
Há alguns dias, o chefão petista Lula da Silva sugeriu que criou o Foro de São Paulo para moderar a esquerda latino-americana. “Fiz questão de chamar todo mundo aqui para dizer para os caras: ‘Ô, cara, a gente pode chegar pelo voto, a gente pode se organizar e acreditar no povo que a gente pode chegar pelo voto’. E obviamente que todo mundo chegou.” Obviamente que não. É um toque de ironia macabra que mais esse gesto de exaltação de um clube de autoritários, que defendeu o “direito” da ditadura de Daniel Ortega na Nicarágua de prender opositores (inclusive padres), tenha sido feito por Lula num encontro com freiras e padres.
O Foro, uma verdadeira frente ampla autocrática, já nasceu retrógrado, na visita de Fidel Castro a Lula em São Bernardo do Campo, em 1990, quando o déspota cubano instou a esquerda a reagir à queda do Muro de Berlim. Sua primeira Declaração manifestava “um compromisso com a validade dos direitos humanos, da democracia e da soberania popular como valores estratégicos, que impõem um constante desafio às forças esquerdistas, socialistas e progressistas de renovar seus pensamentos e ações”. O fracasso em cada um desses compromissos foi retumbante e catastrófico para os povos de países como Venezuela, Cuba ou Nicarágua, mergulhados sempre mais fundo na miséria econômica, social, política e moral por ditaduras militares comandadas por clãs familiares.
O malogro em “moderar” a esquerda é só mais um pelos quais o Partido dos Trabalhadores (PT) não está disposto a se redimir. Ao contrário, a culpa é sempre dos outros, em especial das conspirações do “imperialismo neoliberal” norte-americano. Não fosse por isso, já disse Lula, Cuba seria a Holanda, ou seja, um regime democrático e capitalista com um irretocável histórico de tolerância civil e religiosa.
Com cinismo inacreditável mesmo para seus padrões, Lula perguntou, há menos de um ano, “qual é a lógica” de cobrar um limite ao poder de Ortega e não fazer o mesmo quando se tratava da chanceler alemã Angela Merkel, como se as seguidas vitórias eleitorais de Merkel, em eleições limpas, pudessem se comparar ao regime de exceção nicaraguense. Também não faz muito tempo que Lula exprimiu admiração pelo “controle e poder de comando” do Partido Comunista da China – não por acaso, festejado pelo Foro de São Paulo em nota, no último dia 17, na qual cumprimentava o “camarada” Xi Jinping e seu “trabalho excepcional para melhorar as condições de vida de seu povo” – sem dedicar nenhuma palavra de condenação às conhecidas violações de direitos humanos na China.
Se é flagrante que Lula não conseguiu “moderar” a esquerda latino-americana, é questionável se conseguiu moderar seu próprio partido. Pelo que disse aos religiosos, só em 1989 – após a Constituição à qual se opôs – ele se deu conta de que “era possível a gente ganhar pelo voto sem precisar dar um tiro, sem precisar fazer nada de guerra”. De fato, a luta do PT se deu com outras armas: uma oposição irresponsável, que sabotou todo tipo de política econômica na expectativa de que a ruína do País favorecesse os projetos de poder de Lula; e um governo ainda mais irresponsável, que subornou parlamentares, aparelhou a máquina pública e atropelou as regras fiscais para sustentar sua ambição hegemônica ao poder.
Assim como outros próceres autoritários do Foro de São Paulo, o PT, quando fala em democracia, que Lula agora se oferece para salvar, está se referindo a um tipo muito peculiar de democracia – que o digam aqueles que tiveram sua reputação destruída pelos petistas porque ousaram questionar o Partido dos Trabalhadores e seu Grande Líder.
Muitos eleitores depositarão um voto a Lula exclusivamente motivados pela rejeição a Jair Bolsonaro, com sólidas e bem fundadas razões, a começar pelos riscos reais que o bolsonarismo impõe à democracia. Mas que seja um voto sem ilusões. Um novo mandato de Lula (seu terceiro, e o quinto do PT) pode bem ser, na atual conjuntura, um mal menor que um segundo mandato consecutivo de Bolsonaro. Ainda assim é um mal – e bem grande.