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Diante de escalada golpista, esquerda parece viver no passado

Tiago Ferro

Crítico literário e autor do romance "O Pai da Menina Morta” (Todavia), vencedor do Prêmio Jabuti em 2019

Até aqui os números não mentem: Lula será o novo presidente do Brasil. Bolsonaro sabe disso e decidiu lutar, não para superar o adversário em número de votos, como se espera de quem "joga dentro das quatro linhas da Constituição", mas invalidando o resultado do pleito.

Mesmo com retórica confusa, a movimentação pelo golpe é clara: "Você sabe o que está em jogo, você sabe como você deve se preparar. Não para um novo Capitólio, ninguém quer invadir nada. Mas para nós sabermos o que temos que fazer antes das eleições", disse o presidente em live a seus seguidores, em 7 de julho.

Setores do Exército entenderam a mensagem e investem pesado contra o TSE para corroborar a "tese" de fraude nas eleições. Após sugestões de mudanças sem base técnica, solicitaram arquivos referentes às disputas de 2014 e 2018, em mais um ataque à corte.

A escalada da violência também joga a favor do golpe, seja em mais uma chacina em favela do Rio justificada cinicamente como efeito de medidas do STF durante a pandemia, seja o assassinato de um militante petista por um bolsonarista enfurecido pela retórica do ódio propagada diuturnamente.

A esse estado de coisas, a resposta da esquerda tem episódio curioso: a declaração de apoio a Lula pela popstar Anitta movimentou as redes e fez a cúpula petista comemorar, como se vivesse no passado. Foi-se o tempo em que a contagem dos votos era respeitada. A esquerda parece disputar as eleições de 2002, e não de 2022.

O descompasso tem explicação histórica. A esquerda chegou ao poder no Brasil quando o socialismo real era peça de museu. Aderiu, então, ao que a filósofa norte-americana Nancy Fraser chamou de "neoliberalismo progressista".

Esquematicamente: de um lado, tudo para o mercado; de outro, reparações históricas. Com a pujança chinesa alavancando a economia brasileira, o lulismo pareceu e foi, para muitos, página feliz do país.

Dilma Rousseff esticou a corda do lado progressista: Comissão da Verdade, PEC das Domésticas, juros mais baixos nos bancos públicos.

Com pouca força política para comprar brigas desse porte, ao que se somaram o fato de ser mulher em país obscenamente machista e a crise mundial batendo à porta brasileira, Dilma encontrou oposição feroz e parecia fadada ao mandato único.

No entanto, reelegeu-se. O que poderia significar mais 12 anos de PT no poder, já que a popularidade de Lula o fazia imbatível para voltar ao Planalto. Veio o golpe, Temer, Lula foi retirado do jogo por meio de processo fajuto e, finalmente, o inesperado: a extrema direita no poder.

Em meio à crise econômica, sanitária, social e política sem precedentes, a esquerda se vê emparedada com o neoliberalismo progressista no colo e as bandeiras histórias enroladas.

Por isso, aposta todas as fichas na força carismática de Lula para convencer do milagre do atraso do relógio, sem qualquer articulação concreta para enfrentar o golpe que vem sendo construído às claras dia após dia.

Ou as forças democráticas se unem e reagem à altura imediatamente, ou só nos resta a espera. E a contagem dos corpos (na Amazônia, em Foz do Iguaçu, no Alemão etc).

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