Rascunho de programa de Lula traz museu de grandes novidades do PT
Documentos preliminares de projetos de governo para apreciação de aliados são, por definição, peças destinadas ao espancamento retórico. Como não significam nada real, esses rascunhos servem para a correção de rumos e a orientação do marketing eleitoral dos candidatos.
O texto petista revelado pela Folha tem como virtude apontar como questão central da eleição de outubro os impactos da crise econômica na vida cotidiana: inflação, perda de renda, subemprego, volta da fome. A resistência das franjas mais desassistidas da população em voltar a apoiar o presidente Jair Bolsonaro (PL), como mostrou a mais recente pesquisa do Datafolha, são testemunho dessa leitura.Isso dito, os 90 pontos divulgados pelo PT a seus companheiros na nova candidatura de Luiz Inácio Lula da da Silva à Presidência trazem uma ode inequívoca ao passado —com a sugestão não exatamente criativa do recurso a instrumentos obsoletos para lidar com a realidade.
Nesse sentido, a famosa Carta ao Povo Brasileiro, pela qual Lula beijou a cruz do mercado e antecipou a política econômica que marcou seu primeiro mandato (2003-2006), soa até mais atual.
No corrente texto, ícones petistas como pré-sal e Bolsa-Família estrelam, como se fosse 2010, e o PT do não dá as cartas. Quer revogar a reforma trabalhista de Michel Temer (MDB), até aí seu direito, só que esquece de dizer o que colocaria no lugar num cenário em mutação. No máximo, a surrada menção aos Cristos desse novo Evangelho, os trabalhadores da selva dos aplicativos.
Também diz não a privatizações, quase retomando a campanha do Petróleo é Nosso. Aqui o caldo adensa porque defender o que os governos do PT fizeram com a Petrobras está bastante longe de representar a pureza republicana desenhada no texto.
Se não houve malfeito, falta explicar por que a estatal e o erário receberam de volta R$ 6,5 bilhões em acordos de leniência com envolvidos na corrupção que emergiu na Lava Jato —operação caída em desgraça tanto pelos seus abusos quanto pela conveniência política, que vai do PT a Jair Bolsonaro (PL).
O texto questiona também a venda da Eletrobras, o que gera questões de mercado pertinentes caso o processo esteja concluído antes da virada do governo, e promete proteger Correios e bancos públicos. Se o padrão for o mesmo aplicado por todos os governos desde a redemocratização, o centrão terá muito a agradecer.
Da prateleira do nacionalismo vem também a promessa de investimentos em infraestrutura, algo natural em qualquer país em desenvolvimento. Resta saber, contudo, de onde virá o dinheiro: o atual nível de recursos aplicados pelo Estado está em cerca de 2% do Produto Interno Bruto, um dos menores da história.
Seguindo a lógica dos parágrafos, a solução é enterrar o teto de gastos, outra obra de Temer vista como palavrão por Lula. Como não é explicado o que será feito com a implosão de expectativas que tal medida traria sem uma alternativa coerente, resta especular. O velho método de prometer justiça fiscal, tributária e previdenciária só não veio com o selo reformas porque isso pega mal na esquerda.
O mesmo se diz com outro fetiche que remonta à mentalidade desenvolvimentista anos 1970 que domina o PT, a prioridade dada no papel à reindustrialização. Num mundo abalroado pela disrupção de cadeias globais de comércio pela pandemia e pela Guerra da Ucrânia, é evidente que o tema tem de ser pensado.
Mas aqui tudo o que se vê é um aceno à fórmula dos campeões nacionais, que deu no que deu por aqui. Inserção internacional, que implica decisões políticas, e compreensão das mudanças na globalização sob as égides digital e da Guerra Fria 2.0 entre China e EUA não passam nem perto do debate. Restam menções, sete delas, à ideia de fomento estatal.
Do ponto de vista macro, institucional, o texto traz platitudes corretas sobre foco em políticas para a Amazônia e outras biomas, recuperação do desmonte bolsonaristas em áreas como saúde e educação, proteção de populações vulneráveis e combate à intolerância. Tudo correto, bonito, mas protocolar.
A política externa, que vive a relativa boa notícia de ser inexistente depois da tragédia da era Ernesto Araújo no Itamaraty, voltaria a ser "altiva e ativa" como nos tempos de outro chanceler notório, Celso Amorim. Se o multilateralismo merece uma chance após seu fracasso, parece difícil que isso será alcançado dando choques elétricos no Mercosul ou na Unasul.
Mais curiosa é a citação ao Brics —qual seria mesmo o papel da Rússia de Vladimir Putin no grande plano do seu amigo PT para o mundo em 2023? Mas isso é digressão acadêmica em termos eleitorais, quase, dado que ninguém ganhou ou perdeu um voto com o tema.
A peça evita vespeiros e não repete os recentes ataques de Lula às Forças Armadas. Cita o óbvio, o que se faz necessário em tempos de golpismos explícitos: elas devem respeitar a Constituição.
Simbolicamente, fecha o acervo o tema da liberdade de expressão. Aqui, o DNA intervencionista petista nem se disfarça e remete aos tempos do Conselho Federal de Jornalismo proposto por Lula. Ela "não pode ser um privilégio de alguns setores, mas um direito de todos, dentro dos marcos legais previstos na Constituição, que até hoje não foram regulamentados, de modo a garantir princípios como a pluralidade e a diversidade".
Ante a complexa crise e a ausência programática no deserto radioativo deixado por Bolsonaro, o rascunho petista é um começo de discussão. Mas por ora está mais para um museu de grandes novidades.