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Eleições 2022: direita x esquerda

Ruy Altenfelder, O Estado de S.Paulo

21 de fevereiro de 2022 | 03h00

Num sistema democrático, a alternância entre governos de direita e de esquerda é legítima.

Isaiah Berlin, um clássico do liberalismo, considera de esquerda o liberalismo que se opõe ao excessivo poder da autoridade baseada na força da tradição na qual identifica a principal característica da direita.

Berlin sustenta que o regime autoritário da União Soviética desqualificou e tornou imprestável a distinção entre direita e esquerda, ao usurpar a palavra esquerda. Semelhante afirmação mostra que “esquerda” tem, para quem a enuncia, um significado positivo, embora possa ter, como todas as palavras da linguagem política, que não é uma linguagem rigorosa, ambos os significados, positivo e negativo, conforme quem delas se apropria e o contexto em que tal apropriação ocorre.

Isso explica, também, por que o próprio Berlin chama de esquerda a doutrina liberal que mais lhe agrada, e para cuja reformulação dedicou suas obras mais conhecidas e justamente mais celebradas. O liberalismo de que fala é o social, que se diferencia do clássico próprio dos partidos liberal-liberistas por uma componente igualitária, suficiente, por si só, para incluí-lo sem contradições entre as doutrinas de esquerda.

Norberto Bobbio, um dos mais respeitados pensadores políticos contemporâneos, distingue o significado descritivo e o significado emotivo das palavras. Trata-se de uma distinção fundamental, sobre a qual nenhum crítico depositou a devida atenção. Quem se considera de esquerda, do mesmo modo que quem se considera de direita, admite que as respectivas expressões estão referidas a valores positivos. Essa é a razão pela qual um e outro não deixam de incluir a liberdade entre estes valores. O contraste entre liberatórios e autoritários corresponde a uma outra distinção que não se superpõe à distinção entre direita e esquerda, mas com ela se cruza. Do ponto de vista analítico, o objetivo foi o de fazer emergir da prática política habitualmente seguida e das opiniões correntes, tanto as doutas quanto as populares, o significado descritivo dos termos, independentemente do seu significado emotivo.

Nenhuma pessoa de esquerda pode deixar de admitir que a esquerda de hoje não é mais a esquerda de ontem. Enquanto existirem homens movidos por um profundo sentimento de insatisfação e de sofrimento perante as iniquidades das sociedades contemporâneas – hoje talvez menos ofensivas do que em épocas passadas, mas bem mais visíveis –, eles carregarão consigo os ideais que há mais de um século têm distinguido todas as esquerdas da História.

Talvez, ensina Bobbio, seja a esquerda democrática que possa e deva escutar as vozes que ensinam que o homem é malvado, mas precisa ser, ao mesmo tempo, auxiliado de todos os modos, incluindo os mais prosaicos, como a assistência à saúde e a aposentadoria.

A distinção entre direita e esquerda – que por cerca de dois séculos, a partir da Revolução Francesa, serviu para dividir o universo político entre duas partes opostas – não tem mais nenhuma razão para ser utilizada. É usual a referência a Sartre, que parece ter sido um dos primeiros a dizer que direita e esquerda são duas caixas vazias. E que, por isso, não teriam mais nenhum valor heurístico ou classificatório, e menos ainda avaliativo.

A árvore das ideologias está sempre verde. “Esquerda” e “direita” indicam programas contrapostos com relação a diversos problemas cuja solução pertence habitualmente à ação política, contrastes não só de ideias, mas de interesses e de valorações a respeito da direção a ser seguida pela sociedade, contrastes que existem em todas as sociedades e que não vejo como possam simplesmente desaparecer. Pode-se, naturalmente, replicar que os contrastes existem, mas não são mais os do tempo em que nasceu a distinção: modificaram-se tanto que tornaram anacrônicos e inadequados os velhos nomes.

Sociedades democráticas são sociedades que toleram, que pressupõem a existência de diversos grupos de opinião e de interesse em concorrência entre si; tais grupos, às vezes, se contrapõem, às vezes se superpõem, em certos casos se integram para, depois, se separarem.

Outro exemplo histórico de síntese dos opostos, derivado desta vez das fileiras da direita, foi a ideologia da revolução conservadora, nascida após a Primeira Guerra Mundial como resposta da direita à revolução subversiva que havia levado a esquerda ao poder num grande país e parecia destinada a se difundir em outras regiões.

Um extremista de esquerda e um de direita têm em comum a antidemocracia, que se aproxima não pela parte que representam no alinhamento político, mas apenas na medida em que representam as alas extremas naquele alinhamento, pois os extremos se tocam.

No momento em que no Brasil e no mundo graves crises se prolongam à luz do dia, potencializando a reprodução de imensas zonas de miséria e injustiça, os questionamentos de Bobbio nos estimulam para que se afiem os instrumentos de análise e não se perca de vista o valor das diferenciações.

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ADVOGADO, É PRESIDENTE DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS JURÍDICAS (APLJ)

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