Também existe o eleitor corrupto
É comum falar em políticos corruptos. No entanto, pouco se fala sobre o "eleitor corrupto". Afinal, todo político foi eleito por determinada quantidade de votos suficientes para sua escolha, ainda que por quóruns/quocientes que podem ser aperfeiçoados.
Importante destacar que o crime de corrupção eleitoral está definido no artigo 299 do Código Eleitoral, que prevê a figura do corruptor, bem como a do corrompido. Logo, é uma forma diferente da adotada no Código Penal em que o crime do corruptor é previsto em artigo/capitulação penal diferente da prevista para o corrompido (artigos 317 e 333 do Código Penal). Um dado interessante é que no caso dos crimes de corrupção, tanto comum, como o eleitoral, não incluem a figura do verbo "entregar", ou seja, se o candidato ou servidor público pede vantagem, e a pessoa entrega a mesma não é considerado como "dar" (ato espontâneo). Neste caso, o cidadão não cometeria crime.
Porém, o crime de corrupção eleitoral tem uma delimitação temporal e conceitual bem restrita, ou seja, mais próximo às eleições e voltado exclusivamente para compra de voto. O crime de corrupção eleitoral, não é necessariamente crime de corrupção política (vantagem política). Nem se pode confundir o crime de corrupção eleitoral, com o de boca de urna, pois este não precisa ter uma vantagem expressa, embora tenha um limite temporal ainda mais restrito, pois ocorre apenas no dia da votação, a partir da meia noite.
Outro aspecto é que para a corrupção eleitoral a vantagem não precisa ser apenas financeira, pode ser um cargo, pode ser de natureza sexual, ou de mero espaço político, ou seja, qualquer vantagem indevida.
No entanto, pouco se fala sobre a estrutura de como se faz compra de votos. Na prática o modelo predominante tem se dado da seguinte forma: a venda de votos é realizada de forma estratégica e com participação ativa do eleitor. Em documentos apreendidos em investigação foi identificado que os valores pagos como corrupção variam de R$ 50,00 a 100,00 para o eleitor corrupto, e para os líderes locais em torno de R$ 200,00, ou seja, um valor até pequeno. Particularmente achava que o valor de venda era maior. Geralmente a compra é feita nos dias próximos às eleições (quanto mais próximo maior fidelidade do eleitor corrupto).
Em alguns casos também feita com fornecimento de combustível ou pagando para usar adesivos em veículos, por exemplo. No entanto, o que tem mais impacto é o pagamento na véspera da eleição. Este modelo cria um elo entre eleitor corrupto e candidato corrompido, uma espécie de ética reversa (antiética).
Observa-se que geralmente o candidato aproxima-se do eleitor fazendo propostas de cunho mais coletivo. No entanto, quase sempre, em mais de 90% dos casos, o eleitor é quem inicia o seguinte diálogo: "mas isto que você está falando é para todos, eu quero saber o que você propõe para mim e minha casa". E continua o eleitor: "eu preciso de cerveja para aniversário do meu filho ou também pedidos de pneus, pagamento de contas, materiais de construção, emprego em órgão público (mas deixam claro que querem o emprego, ou status, mas sem trabalhar) e outros similares". Geralmente, o candidato registra o pedido e pode atender posteriormente, ou não, depende do controle de "fidelidade". Alguns candidatos tentam ser politicamente corretos e alegam sorrindo que isto é crime e que não podem atender. No entanto, o eleitor responde, em resumo: "Ora, mas todos fazem isso, não tem cadeia para prender todo mundo".
A medida faz sentido, inclusive eleitores criminosos têm tratamento especial e diferenciado, pois quando presos no dia da eleição, ficam em ginásios, fóruns ou similares, em vez de serem conduzidos ao presídio e são liberados automaticamente ao final da eleição, sem nem mesmo pagarem fiança ou cumprirem outra medida cautelar. Este tratamento diferenciado não faz o menor sentido e nem tem previsão legal, mas é feito com naturalidade pelo sistema jurídico.
Por outro lado, não raro é comum ver candidatos de "primeira viagem" começarem a chorar para conhecidos, em virtude do desencanto com o eleitor, pois o candidato realmente acreditava em propostas coletivas e ficou constrangido e decepcionado com a atitude do eleitor que iniciou uma barganha.
E em razão disso, muitos prováveis e potenciais candidatos desistem até mesmo de tentar candidatar, pois desiludem com o eleitor.
E não se trata de vitimismo para justificar e dizer que pobre tem nesta oportunidade um momento para conseguir ser ouvido. Afinal, o que varia por classe social é a natureza do pedido, pois pobre pede menos, e classe média pede emprego no setor público (mas com muito pouco trabalho) e se for classe alta pede um contrato empresarial (até faz doações para a campanha por "acreditar nas propostas").
Um outro ponto que alguns candidatos mais experientes falam é que o apoio mais caro, se for eleito, é dos apoiadores que não receberam pagamentos durante a campanha. Pois depois da eleição, se o candidato apoiado foi eleito, este "apoiador voluntário" acredita que foi o responsável pela eleição e deseja tudo, e ainda faz chantagens veladas ou até diretas mesmo.
Para atender aos pedidos do eleitor corrupto durante a eleição é preciso haver uma certa rede de investigação. Logo, líderes de bairros ou de associações identificam quem seria "fiel" para receber os valores e votar. Mas, como saber se cumpriu a promessa? Isto não é tarefa fácil. Mas, citando o caso de uma eleição municipal como exemplo. O candidato a prefeito terá votos em todas as urnas, o que seria difícil de comprovar a fidelidade corruptiva do eleitor. Então mede-se pelo voto do candidato a vereador, por isso, a compra de votos tem que ser casada entre candidato a vereador e prefeito, onde presume-se que se o candidato a vereador teve votos na urna X, então também o eleitor votou no candidato a prefeito. Inclusive, quanto mais votos tem o candidato a vereador maior a possibilidade de receber mais recursos para pagar as despesas de campanha.
No entanto, o curioso é que quase nunca a proposta de corrupção parte do candidato, e sim, do eleitor.
Além disso, são feitas pesquisas não registradas na Justiça Eleitoral para identificar onde há votos favoráveis e contrários, os endereços e dados dos eleitores são repassados, sem autorização dos eleitores, para aliados políticos, e fingindo ser uma pesquisa, fazem é uma investigação ilegal, inclusive para identificar indecisos.
Temos também aquela compra de votos mais sútil, na qual os cidadãos ficam reféns de serviços públicos sem um critério objetivo de atendimento, e então os políticos usam esta espécie de "fura fila" para manter o eleitor cativo. No entanto, este cidadão/eleitor não se preocupa em melhorar o serviço em si, pois basta ser atendido individualmente (predador social) e não importa o outro, logo o serviço continua ruim, em um círculo vicioso.
Além disso, há programas sociais, que não exigem um esforço pessoal, e acabam sendo uma moeda permanente de barganha e dependência que também gera voto, em que o eleitor acomoda-se em um círculo vicioso.
O que impressiona é o descaso e descompromisso do eleitor com a importância do voto, e depois quer reclamar dos serviços públicos estatais, embora sempre tenha como visão "mais Estado". Este é um paradoxo da "cabeça do brasileiro", pois critica Estado, mas sempre vê como solução "mais Estado", o que decorre provavelmente até mesmo de aspectos religiosos de determinada religião que critica o lucro, ainda que decorrente do trabalho. Além disso, e com base ainda no esteio tecnocrático também fortalece a visão de "servidores públicos" não são ambiciosos e não visam lucro, apesar de carreiras públicas terem salários maiores que na iniciativa privada.
Mas, este descaso com o coletivo e com o próximo também está em classes sociais mais abastadas, não se trata de apenas pobreza e falta de ensino formal. Em determinado condomínio fechado de classe média a preocupação em grupos de rede social é com furtos de orquídeas e também fezes de cachorros nas portas das residências, mas praticamente nada se preocupam com as áreas de uso comum, principalmente se foram as áreas verdes/ecológicas. As áreas comuns destinadas a esportes até há uma preocupação maior, embora bem menor que o espaço do terreno da residência em si. Esta pequena abordagem demonstra um indicativo forte do descaso do eleitor brasileiro com as questões coletivas e de interesse macro, e isto reflete na eleição.
As dificuldades para se combater a corrupção eleitoral são enormes até mesmo pelo fato de que nos Tribunais Eleitorais há advogados, juízes temporários, mas não há promotores, o que acaba violando a paridade de armas, mas isto é pouco debatido.
Em outro giro, registra-se que já foi informado ao TSE que a figura de fiscais de partido e até mesmo das formiguinhas estão sendo meio de compra de votos, pois diluem a fiscalização e muitos não estão trabalhando. No entanto, o corpo técnico do TSE informou que não tem estrutura para fiscalizar. Porém, foi rebatido que basta exigir que o candidato /partido cadastre seus fiscais e os "formiguinhas" no sistema antes do dia da eleição e que este dado fique público e de fácil consulta. Então alegaram que não há previsão legal para isso. Ora, isso poderia ser feito com base no poder normativo do TSE. Afinal, o caso de suspender verbas de empresas privadas foi feito com base neste poder normativo, embora não exista previsão expressa em lei.
Na prática da corrupção eleitoral é comum que se apreenda o dinheiro no dia da eleição, mas o candidato/partido alega que a verba é para pagar seus fiscais ao final do dia, e como não é possível saber oficialmente quem é fiscal de partido, então o dinheiro tem que ser devolvido ao candidato.
Tem muita gente que supostamente recebe como fiscal de partido, mas não vai trabalhar, ou trabalham apenas poucas horas, e assim, cria um rodízio para atender a um grupo maior de pessoas. Isso tudo com a conivência do cidadão eleitor que finge ser fiscal, uma função remunerada pelo partido, sem transparência alguma. A lei nem afirma que possa ser remunerada, embora também não vede.
Isto leva a outra conduta como no caso de o candidato ser vencedor, então acreditar que apenas venceu um jogo individualista e que tudo pode, como se tivesse ganho na mega sena e o dinheiro público lhe pertencesse para seus fins privados.
Ou seja, é uma espécie de corrupção moral que também chamam de "corrosão do caráter". Em que se retira a responsabilidade individual pelo todo, isto ocorre ao se fortalecer a figura do "Estado babá" ou até mesmo 'Deus-babá" (para algumas seitas), onde Deus e o Estado é que deve servir às pessoas, e não, o contrário. E como no caso do condomínio, o "eu" passa a ser o centro do universo, e não há mais esta relação entre esforço pessoal, responsabilidade individual e solidariedade, o que é pregado pelo Cristianismo, e ao se perder os valores ocidentais tradicionais, o que se tem é um "vale tudo" decorrente do caos social e que permite esta visão reducionista de espaço e reflete na venda de votos, por exemplo, além de outros comportamentos sociais abusivos.
Combater a corrupção não é ato fácil, por exemplo, um servidor público que não tenha produtividade, está cometendo uma corrupção, pois é uma vantagem indevida.
Em pesquisa ouvindo o setor empresarial foi constatado que para os mesmos a ineficiência estatal gera mais prejuízo que a corrupção. Um dado interessante é que a legislação brasileira não prevê a corrupção empresarial, apenas existe corrupção criminal se envolver o setor público.
Todo partido político, como recebe verba pública, deveria ter um portal da transparência e não apenas prestar contas à Justiça Eleitoral, pois no portal haveria mais publicidade, o que não existe no sistema atual.
Contudo, o que move a sociedade são dois fatores básicos: recompensa e punição. No caso as punições no campo eleitoral estão muito focadas no candidato, e tratam o eleitor com mera vítima da sociedade ou do sistema. No entanto, são muito mais responsáveis do que imaginamos, e urge que os sistemas punitivos ampliem as punições para o eleitor corrupto, e permitindo vias mais rápidas para se punir e que não sejam apenas criminais.
Portanto, é preciso que a lei estabeleça sanções administrativas mais graves para o eleitor corrupto, como impedir de votar, e assumir cargos públicos, perda de benefícios fiscais, por no mínimo oito anos, inclusive se cometer o crime por meio de pessoa jurídica, o que seria estendido à empresa, além de restrição de uso de alguns serviços públicos, isto para eleitores que cometerem ilícitos de natureza eleitoral, pois isto daria um temor maior, e embora os garantistas aleguem que punição não funciona, a população sabe que funciona, pois aumenta o risco e todas as pessoas fazem este cálculo antes de cometerem o crime (Teoria Econômica do crime).
Andre Luis Alves de Melo é promotor em Minas Gerais, doutor em Direito Constitucional pela PUC-SP, mestre em Direito pela Unifran e associado do Movimento do Ministério Público Democrático.
Revista Consultor Jurídico, 23 de dezembro de 2021, 16h38