Ainda é cedo para falar em adiamento das eleições municipais
Vivemos hoje um momento de um profundo paradoxo: no mundo todo, estamos vivendo um distanciamento social que transformou drasticamente nossa rotina, ao mesmo tempo muitas necessidades humanas estão mais latentes, de maneira pouco vista antes. A mudança de estilo de vida fez com que precisemos mais nos comunicar e nos conectar com pessoas. Um exemplo concreto são os pais que trabalhavam fora e cujos filhos estudavam presencialmente na escola. Neste momento em que estão aprendendo a auxiliar os filhos nas atividades escolares virtuais e lidando com o home office, além dos cuidados com a casa, eles acabam por criar redes de contato para dividir seus dilemas. Muitas vezes, conversa-se até com desconhecidos para encontrar soluções e compartilhar problemas em comum. Conectados, esses pequenos grupos acabam também por debater outras questões sociais conjuntamente.
Há, portanto, uma maior união entre as pessoas que vivem em condições semelhantes, mesmo com o distanciamento, um fenômeno que surgiu por conta da pandemia. Acredito que uma das grandes virtudes humanas é saber colaborar com estranhos, os seres humanos criaram a reciprocidade e carregam um grande senso de cooperação com o próximo. Nossa vida corrida nos distanciou dessa vertente, mas este momento de crise fez com que descobríssemos novamente esse aspecto. A reciprocidade para com aquele que vive uma condição semelhante e o compartilhamento de soluções é cada vez mais urgente agora. Trata-se de ser empático com o próximo, uma qualidade que envolve perceber o seu próximo também como um eu.
Richard Swift, estudioso da economia, diz que sem reciprocidade a sociedade não poderia mais existir. Em momentos adversos como os que estamos enfrentando, o egoísmo não pode mais prevalecer sobre o coletivo. Essa articulação entre as pessoas agora tem também impactado o cenário político brasileiro, já que novos grupos sociais estão florescendo, em busca de soluções ou formulando críticas à sociedade juntos.
Assim, sairá na frente pela disputa política o candidato que melhor conseguir mapear os diversos grupos que vêm surgindo e entender suas necessidades. Aquele que souber dialogar com essas pessoas e criar pautas específicas que atendem às suas demandas. Pautas políticas amplas não serão mais suficientes para as próximas eleições.
Sabemos que a democracia pressupõe que a maior parte possível dos cidadãos seja representada politicamente e que todos possam atuar, dialogando para construção de uma sociedade mais justa e inclusiva. Nesse contexto, o Brasil enfrenta um grande desafio democrático por ser um país extremamente plural, com grandes dimensões continentais, muito populoso e com uma diversidade enorme. Como fazer então para que essa diversidade seja representada e tenha voz?
Nossa estrutura político-partidária conta com muitos partidos que, mesmo similares e com pautas parecidas, têm suas peculiaridades. Ainda assim, até hoje os partidos não deram conta de atender todos os grupos sociais. A crise provocada pela Covid-19 chega num período delicado, de eleições municipais — importantíssimas porque são os governos municipais os mais próximos da população, seus feitos, acertos e erros são mais visíveis para ela. Portanto, num ambiente caótico de isolamento social necessário como se darão as próximas eleições, visto que há um grande risco de contágio da população com a votação presencial? Há dois pontos que estão sendo debatidos: 1) devem ou não acontecer as eleições neste ano?; e 2) a crise de representação política no país.
Já não é de hoje que muitos grupos não se sentem plenamente representados, mesmo dentro de partidos que abrem espaço, de certa maneira, para a diversidade. Há diversos coletivos e redes que não encontram apoio político da forma como gostariam. Alguns exemplos são: o empreendedorismo feminino, cuja rede de mulheres em todas as regiões brasileiras cresce e é cada vez mais forte; grupos com foco na economia criativa, cuja visão da economia e de diversos aspectos sociais é mais moderna ou diferente; educadores — embora a educação seja uma pauta reconhecida, ainda são poucas as lideranças políticas que de fato a priorizam ou têm uma relação mais estreita com seus agentes; grupos que defendem a agricultura sustentável — ainda que contemos no Brasil com uma forte bancada ruralista, os temas da sustentabilidade são pouco ou quase nada debatidos.
Soma-se a isso a grande crise política provocada pela última eleição presidencial que polarizou nossa sociedade de forma violenta, rachando o país, sem deixar espaços para o diálogo. Ainda que a polarização tenha mascarado essa crise de identidade já existente, fez também com que esses grupos se fortalecessem em busca de soluções não encontradas. Agora, diante da pandemia, esse gap ficou ainda mais evidente, voltando às mesas de debates.
Por isso, quem pensa em se eleger daqui para a frente terá que se aproximar e dialogar com essa diversidade, incorporar e envolver as minorias, trazer essas pessoas para perto. É uma oportunidade para candidatos que buscam ampliar seu eleitorado. E a internet é um ponto comum onde o diálogo eleitoral e o diálogo de grupos — mais ou menos organizados -— acontece (ou deveria acontecer) de maneira mais atuante.
Muitos desses grupos não representados usam a internet como ponto de encontro. O empreendedorismo feminino, hoje, pode ser uma espécie de grupo político, que se utilizou da internet e das redes sociais para se articular e criar sororidade entre seus diversos coletivos regionais. Uma das justificativas para um possível adiamento das eleições é que os candidatos não poderiam fazer campanhas presenciais, mas já há muito tempo as redes sociais têm sido um espaço de articulação política de candidatos. Portanto, já está mais do que na hora de virtualizar as eleições, com votação online. Se podemos movimentar a economia virtualmente, pedir auxílio emergencial pela internet, se é possível realizar audiências de forma virtual, entre outras tantas atividades, precisamos amadurecer o processo eleitoral online. Essa mudança será inevitável no futuro.
Voltando às novas formações de grupos na sociedade atual, embora haja um pequeno grau de organização entre eles, muitas redes ainda estão pulverizadas, com diversos núcleos regionais e sem uma única liderança forte (há diversos expoentes importantes, mas não uma figura única que os represente). Ainda que bastante articulados, muitos desses coletivos estão em processo de amadurecimento político. Alguns procuram respaldo em partidos políticos já existentes, mas começam a se organizar para se tornar partidos independentes. Muitos, que se consideram apartidários, como os grupos do setor filantrópico, acabam tendo afinidade com algumas ideologias políticas, mesmo não tendo filiação, e assim construindo demandas sociais específicas. Outros grupos, que sustentam pautas suprapartidárias como a questão ambiental, têm a tendência de se tornarem partidos políticos ou a se juntarem a algum partido ou candidato que melhor dê voz às suas demandas.
No entanto, é preciso lembrar que a formação de agremiações políticas no Brasil é bastante complexa e leva em média três anos e meio; envolve também diversas etapas: elaboração de um programa e estatuto com assinaturas de mais de cem fundadores, registro em cartório, publicação do estatuto no Diário Oficial da União, entre outras. Além disso, a criação de um partido político no país exige uma grande articulação nacional e para redes e grupos locais pulverizados esse movimento é quase impossível.
A formação de um grande partido de mulheres empreendedoras, por exemplo, seria, portanto, fruto de uma união de várias redes de empreendedoras. Essa atitude precisa de um amadurecimento político que poucos grupos por enquanto possuem, seja por contar com atuação de muitos jovens ou de minorias ainda muito discriminadas e marginalizadas. Mas a existência de organizações políticas oriundas desses grupos é inevitável no futuro: não há um retrocesso nesse ponto, porque a articulação dessas pessoas tende a crescer, cada vez mais. Seu surgimento está atrelado à falta de sensibilidade dos partidos políticos atuais em lidar com a sua própria diversidade e à falta de uma gestão empática para as minorias. No caso das mulheres já inseridas numa sigla, é difícil se desenvolver porque o machismo estrutural está presente e se manifesta na rotina política, assim como para os negros e para os cidadãos LGBT, que enfrentam muitos preconceitos. É preciso que se incluam representantes desses coletivos na cena política.
Assim, com ou sem eleição, o cenário político, daqui para frente, sofrerá muito mais pressão por parte dessas novas organizações sociais que estão sendo mais fortemente impactadas pela pandemia ou que têm novos olhares para a construção de um estado de bem-estar social. Há uma conexão muito maior entre essas redes e um contexto muito favorável para se criar uma unidade e uma formação mais sólida como voz social.
Por isso, acredito que nesse momento é precoce falar de adiamento de eleições. Estamos num momento de instabilidade nunca vista antes. O caos social é tanto que não sabemos como estaremos daqui a uma semana. Recentemente, vimos que em algumas localidades, como Blumenau (SC), houve o afrouxamento da quarentena e, por consequência, um novo pico da doença na região — próxima a triplicar os casos da Covid-19 depois da reabertura do comércio. Como as eleições em nosso país ainda significam deslocamento e aglomeração, essa discussão deve ser adiada para que nosso foco seja a preservação de vidas. Nesse momento, seria mais produtivo pensar no uso do fundo eleitoral, pauta que deveria ser prioridade para veículos de comunicação e para os próprios partidos. É hora de se debater como e porque usá-lo, deve-se ter cautela nas decisões em relação às eleições para priorizar a saúde de todos cidadãos, incluindo líderes políticos e figuras públicas.
Ana Beatriz Prudente é gestora de Economia Criativa, educadora de mulheres empreendedoras, membro da Comissão Permanente de Combate à Covid-19 da Faculdade de Educação da USP e da Comissão de Cooperação Internacional da FEUSP e multiplicadora de Sustentabilidade Ambiental.
Revista Consultor Jurídico, 13 de maio de 2020, 6h02