Senado pode votar nesta semana projeto que reduz transparência em campanhas eleitorais
Por Elisa Clavery e Gustavo Garcia, TV Globo e G1 — Brasília
O Senado deve votar nesta semana um projeto de lei, já aprovado pela Câmara, que pode reduzir a transparência e dificultar a fiscalização de eventuais irregularidades em campanhas eleitorais, segundo especialistas e parlamentares ouvidos pelo G1 e pela TV Globo.
A proposta, que muda a legislação eleitoral, a lei dos partidos e outras regras, é o primeiro item da pauta de votações da Casa desta terça-feira (17). Parlamentares favoráveis ao texto têm pressa na análise do projeto, para possibilitar que as novas regras valham já para as eleições de 2020.
Pelo princípio da anualidade, alterações nas regras eleitorais precisam ser sancionadas pelo menos um ano antes do próximo pleito eleitoral. Por isso, a proposta deve ser votada com rapidez e sem alterações em relação ao conteúdo aprovado pelos deputados.
Na semana passada, senadores tentaram colocar a proposta em votação com urgência, mas houve resistência e a análise foi adiada para esta semana.
Inicialmente, o projeto alterava apenas regras para a remuneração de funcionários de partidos políticos. No entanto, o texto foi transformado em uma minirreforma eleitoral (veja no vídeo abaixo).
Entre os pontos do projeto que dificultariam a fiscalização – por parte dos tribunais eleitorais – de eventuais irregularidades em campanhas, estão a prorrogação de prazos para a prestação de contas; a possibilidade de utilização de quaisquer sistemas de contabilidade disponíveis no mercado; e mais tempo para a correção de dados.
Fiscalização de contas
Se aprovado, o texto poderá dificultar a fiscalização por parte da Justiça Eleitoral, uma vez que flexibiliza a prestação de contas eleitorais por parte dos partidos, prorrogando seus prazos de entrega.
Além de estender a data para a prestação de contas partidárias do dia 30 de abril para o dia 30 de junho, o projeto permite que os partidos apresentem também as contas eleitorais neste dia.
Atualmente, a prestação de contas eleitorais pelos partidos é tratada por meio de resolução do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que estabelece que a sigla deve apresentar seus gastos de primeiro turno até 30 dias depois das eleições e, havendo segundo turno, até 20 dias depois.
Na prática, isso significa que parte das fontes de financiamento dos gastos com as eleições, aquelas que vieram dos partidos políticos, poderia passar à margem da Justiça Eleitoral até junho do ano seguinte ao do pleito.
Isso dificultaria, também, possíveis representações da Justiça contra candidatos por irregularidades durante a campanha – que poderiam ser apresentadas em até 15 dias após a diplomação do candidato.
Para o professor de Direito Eleitoral do Mackenzie, Diogo Rais, este ponto poderia, inclusive, ser questionado judicialmente.
"Imagina a situação: aprova-se essa norma, o Supremo [Tribunal Federal] julga inconstitucional este ponto ou outro e a gente fica sem norma, porque não dá mais tempo de fazer uma nova. Corre-se o risco grande de insegurança jurídica", afirma.
Sistema para prestação de contas
O texto também deixa explícito que a prestação de contas dos partidos pode ser feita em qualquer sistema de contabilidade disponível no mercado, sem padronização.
Técnicos da Justiça Eleitoral já se preocupam com problemas de operacionalização em relação ao sistema usado pelos tribunais eleitorais, caso o projeto seja aprovado.
Segundo eles, comparativamente, seria o mesmo que uma pessoa física elaborasse seu imposto de renda em qualquer planilha e apresentasse à Receita Federal.
"Na prática, [isso] vai inviabilizar a transparência das contas partidárias", afirmou o cientista político Marcelo Issa, diretor do movimento Transparência Partidária.
Correção de dados
Outro ponto que poderia diminuir a transparência nos gastos de campanha é a possibilidade de candidatos e partidos corrigirem os dados apresentados até o dia de julgamento das prestações de contas, sem que haja qualquer punição por isso.
Atualmente, a lei já dá margem para que erros formais e materiais não levem à rejeição das contas, nem à punição de um partido ou candidato, sem trazer um prazo para a correção.
Contudo, a nova redação aliviaria, também, as omissões e atrasos na divulgação até a análise da Justiça Eleitoral.
"Há a possibilidade de inserção de dados falsos nos sistemas que permitem o acompanhamento das contas eleitorais, que foram fundamentais para a identificação das candidaturas-laranja nas últimas eleições", disse.
Segundo o cientista político, isso poderia, inclusive, atrapalhar o trabalho da imprensa – que se baseia nas prestações de conta dos candidatos para levantamentos sobre gastos nas campanhas eleitorais.
"Sem dúvida [pode ser prejudicial para a atividade da imprensa]. Quando a gente fala de transparência, isso inclui a imprensa, que é um agente de fiscalização, ao lado das entidades da sociedade civil, extremamente relevante", afirmou Issa.
"No caso das candidaturas laranjas do ano passado, foi fundamental que a imprensa tivesse detectado ao longo das eleições ou logo depois das eleições a ocorrência desses indícios", completou.
Além disso, a multa por desaprovação de contas só poderá ser aplicada caso seja comprovado que o erro aconteceu de forma intencional.
"A Justiça Eleitoral teria de realizar uma série de diligências para produzir prova, para conseguir demonstrar que a inserção de uma determinada informação naquela prestação de contas não ocorreu por um erro, mas por uma conduta intencional. Isso é extremamente difícil de se fazer em atividades de contabilidade. Na prática, significa uma autorização para uma verdadeira anistia em relação às prestações de contas", afirmou o diretor do Transparência Partidária.
Fundo partidário
A proposta amplia a lista de despesas que podem ser arcadas com recursos do fundo partidário, composto por dotações orçamentárias da União (recursos públicos), multas, penalidades e doações.
De acordo com o projeto, o dinheiro do fundo também poderá ser utilizado para o pagamento de multas eleitorais, decorrentes, por exemplo, de propaganda eleitoral irregular.
O fundo também poderá ser utilizado para a compra ou locação de bens móveis ou imóveis e para o custeio de impulsionamento de publicações em redes sociais.
Além disso, no caso de desaprovação de contas, a proposta prevê um teto para o desconto – já previsto em lei – nos repasses ao fundo partidário. Pela proposta, esse desconto não poderá ser superior a 50%.
Fundo eleitoral
O projeto também promove alterações ao fundo especial de financiamento de campanhas, o fundo eleitoral, composto com recursos públicos de emendas de bancadas estaduais.
O texto retira o percentual mínimo de 30% de emendas previsto atualmente em lei. O valor do fundo, no entanto, será definido na lei orçamentária. Nas últimas eleições, o fundo eleitoral foi de R$ 1,7 bilhão (veja no vídeo abaixo).
A proposta altera ainda as regras para a divisão do fundo eleitoral, e toma como base de cálculo para a distribuição de recursos o número de deputados eleitos nas últimas eleições gerais, no caso, a eleição de 2018, quando PT e PSL fizeram as maiores bancadas.
Debate
Líder da oposição no Senado, Randolfe Rodrigues (Rede-AP) classificou a proposta como “retrocesso” na legislação partidária e na transparência da atuação das legendas.
"Permite o pagamento de multas com recursos do fundo partidário. O partido comete uma transgressão e utiliza recurso público para pagar", afirmou Randolfe.
O parlamentar também criticou a celeridade com que a proposta está sendo analisada pelos senadores. "O projeto só deixa os políticos menos credenciados e com menos apoio popular", declarou.
Relator da proposta, Weverton Rocha (PDT-MA) afirmou, em parecer, que as mudanças propostas buscam "aperfeiçoar e reforçar" a segurança jurídica do processo eleitoral.
"A cada eleição, o Congresso Nacional deve buscar aprimorar o processo, de modo que ele traduza, da melhor forma possível, a vontade do eleitor. Regras claras e transparentes para o processo, ao mesmo tempo em que se garanta igualdade de oportunidades aos candidatos, são princípios que orientam o projeto que ora examinamos", disse Rocha.
Em nota, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), declarou que a proposta foi "amplamente" discutida na Câmara dos Deputados e "infelizmente" chegou ao Senado apenas na semana passada.
"Os senadores estão debruçados sobre o tema e ele irá ao plenário assim que possível, dada a proximidade das próximas eleições e a necessidade da anualidade das matérias serem votadas e estarem sancionadas, com eventuais vetos apreciados até o dia 3 de outubro", frisou Alcolumbre.
Outros pontos do projeto
Pagamento de advogados
O projeto também permite que o fundo partidário, dinheiro público que é repassado mensalmente às legendas para o financiamento de suas atividades, seja usado para pagar advogados e contadores em processos relacionados aos partidos ou aos candidatos.
Pelo texto, essas despesas não serão contabilizadas para o teto de gastos da campanha. Além disso, doações de pessoas físicas para despesas com advogados ou contadores também podem ultrapassar o limite hoje imposto pela lei – um doador pode contribuir com até 10% da renda do ano anterior.
Na avaliação de Marcelo Issa, diretor-executivo do movimento Transparência Partidária, essa alteração na lei abre brecha para atividades de caixa 2 e de lavagem de dinheiro.
"Uma campanha que custe [até] R$ 2 milhões [de teto] pode receber outros R$ 2 milhões para o advogado", exemplifica Issa. "A prática de caixa 2 consistiria em direcionar menos do que isso para o advogado ou para o contador e utilizar o restante para a campanha ou para outros fins", disse.
Para o advogado e ex-ministro do TSE Henrique Neves, porém, a retirada deste serviço do teto de gastos da campanha garante o direito de ampla defesa dos candidatos.
"Se você pegar três processos e o advogado cobrar o mínimo da tabela da OAB [Ordem dos Advogados do Brasil], o candidato estouraria o teto de gastos. Significa que todo o dinheiro que entrar para o candidato vai ter que ser gasto com o advogado e ele não vai poder fazer campanha, isso está errado", disse Neves.
"Eu não posso ter uma limitação, direito de defesa não pode ser limitado", acrescentou.
Neves destaca, contudo, que o valor da contratação destes serviços precisa ser informado, para que haja transparência.
Tanto o fundo partidário quanto o eleitoral são compostos por dinheiro público. O último, porém, foi criado em 2017 como forma de substituir as doações empresariais de campanha, proibidas em 2015 pelo Supremo Tribunal Federal (STF), e é utilizado nos gastos com as campanhas eleitorais.
Repasses para candidatas mulheres
Outra brecha criada pelo projeto poderia terceirizar a responsabilidade no repasse de recursos para o incentivo da participação de mulheres na política.
O texto permite que a administração dessa verba fique sob responsabilidade de um instituto com personalidade jurídica própria. Na prática, isso poderia livrar dirigentes do partido por eventuais irregularidades nesses repasses.
Marcelo Issa alerta que a redação do projeto também não prevê uma fiscalização específica por parte dessa entidade, o que poderia abrir margem para isentá-la de prestar contas à Justiça Eleitoral.
"A fiscalização dos recursos transferidos não obedeceria a lógica de prestação de contas que o próprio partido ou a fundação partidária tem em tese de obedecer à Justiça Eleitoral", disse Issa.
Propaganda partidária
O projeto também reintroduz as propagandas partidárias nas emissoras de rádio e TV, que haviam sido extintas na última reforma eleitoral feita em 2017.
As propagandas partidárias são aquelas em que as legendas difundem programas partidários, prestam informações sobre a execução de programas da sigla e de atividades congressuais da legenda, entre outras finalidades. PORTAL G1