A crise e seu espetáculo - MARCO ANTONIO VILLA
Como é possível um governo lambuzado em dezenas de casos de corrupção, e tendo o seu principal líder acusado de graves crimes, continuar agindo e dirigindo os negócios públicos como se o país vivesse em plena bonança econômica e respeito aos valores republicanos? Vivemos uma situação anômala. O mais estranho é que os dias vão passando, as crises — pois são várias — vão se sucedendo e se aprofundando, mas nada muda. Nada no sentido da interrupção deste perverso processo. É como se estivéssemos condenados ao fogo eterno, cada vez mais quente e mais devastador.
A sucessão das denúncias e as condenações na operação Lava-Jato — quase uma centena, até agora — são recebidas como algo natural, parte intrínseca da política. Diversamente dos Estados Unidos, o nosso destino manifesto seria conviver com a corrupção. Sempre teria sido assim — e sempre será assim. O que em outros países encerraria a carreira de um político aqui passou a ser entendido como um ato falho, de falta de esperteza.
Não é preciso ir muito longe na nossa história ou buscar formas metafóricas para tratar da conjuntura brasileira e de seus personagens. As acusações que pesam sobre Luiz Inácio Lula da Silva não encontram paralelo na nossa tradição e nem na contemporaneidade ocidental. Isto porque, além dos indícios de ocultação de patrimônio denunciados pelo Ministério Público, são estabelecidas relações com o maior desvio de recursos de uma empresa pública da história, o petrolão. E que levaram a Petrobras a uma situação pré-falimentar.
Lula continua agindo como se vivesse em um país imaginário e que sobre ele não pesasse nenhuma acusação ou — o que é pior — fosse inimputável. Quando disse que era a alma mais honesta do Brasil, a afirmação foi recebida como chacota. Mas não: ele acredita que é intocável, como os nossos imperadores de acordo com a Constituição de 1824 — ressaltando, claro, que nenhum deles, Pedro I ou Pedro II, cometeram ilícitos da magnitude do petrolão. Evidentemente que não imagino que Lula leu a Constituição Imperial. Qual o quê. Não leu nem a de 1988 — penso até em sugerir uma edição exclusiva para ele e, para deixar a árdua tarefa mais palatável, poderia colorir artigo por artigo.
Dilma considera que tudo vai bem. Ficou — ou fingiu? — indignada com a avaliação do FMI sobre a economia brasileira. Fala de um Brasil que não existe. As entrevistas com os jornalistas, às sextas-feiras, foram patéticas — patéticos também foram os jornalistas: alguns tiram selfies com a presidente. Estamos na maior depressão econômica da nossa história, e Dilma age como se tivéssemos crescendo a ritmo chinês. A reunião do tal Conselhão — que não tem legalidade constitucional; o que há na Constituição é o Conselho da República, que nunca foi convocado por ela — foi mais um exemplo de dissociação entre o mundo imaginado pela presidente e o cenário de caos econômico que vivemos. O mais patético foram os representantes empresariais que compareceram e legitimaram a farsa.
Teremos um 2016 onde as crises ética e econômica vão se agravar. A Lava-Jato — e outras eventuais operações da Polícia Federal — deverão devassar ainda mais os crimes deste triste método de governança adotado desde 1º de janeiro de 2003. Tudo indica que a economia deve ter um desempenho igual ou pior que 2015, ou seja, a recessão deve chegar a um resultado negativo do PIB próximo de 4%. É como se assistíssemos a um naufrágio de dentro do navio, com acesso aos botes salva-vidas, mas sem que façamos qualquer movimento, inertes, passivos, quase que um suicídio histórico.
O projeto criminoso de poder ainda tem muita lenha para queimar. E estão queimando. Destruíram a maior empresa brasileira. Atacaram com voracidade os fundos de pensão dos bancos e empresas estatais. Agora, estão solapando as bases do FGTS com a complacência das centrais sindicais pelegas. Possuem uma ampla base de apoio que é sustentada pelo saque do Estado. A burguesia petista ainda tem os bancos e benesses oficiais como suas propriedades. Os sindicatos nunca tiveram tanto dinheiro, produto do famigerado imposto sindical. Os tais movimentos sociais sobrevivem com generosas dotações governamentais sem que haja qualquer controle da utilização destes recursos. E são milhares de sindicatos e associações. Isto sem falar em outros setores, como os blogueiros e jornalistas amestrados, os artistas — em tempo: o que Chico Buarque acha do triplex e do sítio do Lula? São tenebrosas transações? Pseudointelectuais et caterva.
Estamos em meio a uma selva escura. E, pior, sem que um Virgílio nos conduza. Fazer o quê? Este é o paradoxo que vivemos. O projeto criminoso de poder nunca esteve tão debilitado, desmoralizado. Sobrevive porque não encontra obstáculos na estrutura legal do Estado — as instituições, diferentemente do que dizem as Polianas, não funcionam —, e inexiste uma oposição política digna deste nome. Há esforços isolados, quando muito. Os líderes oposicionistas não estão à altura do momento histórico. São fracos, dispersivos. Não gostam de serem obrigados a ter de enfrentar o governo e seus asseclas. Preferem o ócio, a conciliação parlamentar. Acreditam que a Lava-Jato e a gravidade da crise econômica vão, por si só, derrotar a quadrilha que tomou conta do aparelho de Estado. Não entenderam que, assim como o hábito não faz o monge, a crise pode não conduzir mecanicamente a uma queda imediata do petismo. Pode sim empurrar o Brasil para uma depressão econômico-social nunca vista na nossa história. E quando forem assumir o governo, só haverá ruínas.
Marco Antonio Villa é historiador / O GLOBO