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O pontificado laico e a República

Com sua intervenção sobre os ritos a serem obedecidos no processo de tramitação do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, o Supremo Tribunal Federal atravessou o Rubicão, passando por cima do voto do relator, Edson Fachin, e fez ouvidos moucos à veemência com que o ministro Dias Toffoli sustentava não passar dos limites, que o Poder Judiciário deveria reservar-se diante dos atos emanados do Poder que representa a soberania popular – dois ministros a que não se podem atribuir posições adversas ao governo e a seus dirigentes. Finda a votação, um País perplexo pôde constatar que mais um passo tinha sido dado em direção a um governo de juízes – às favas os escrúpulos com as obras de Habermas e de Dworkin, referências cultuadas entre magistrados –, categoria agora elevada ao status de um pontificado laico, com a confirmação de que não há mais limites para a patológica judicialização da política reinante entre nós.

É verdade que trazemos inscrito no código genético do nosso processo de modernização a intervenção do juiz em matéria crucial em sociedades capitalistas, qual seja a regulação pela Justiça do Trabalho do valor da mercadoria força de trabalho, quando, nos idos do regime da Carta de 1946, um magistrado arbitrava o quantum do salário “justo” por cima das partes envolvidas nos conflitos salariais e, no caso de desobediência, sujeitava a sanções os sindicatos e seus dirigentes. Convertia-se, então, um fato mercantil em jurídico. No remoto ano de 1976, em Liberalismo e Sindicato no Brasil (Paz e Terra, Rio de Janeiro, primeira edição), o autor deste artigo se empenhou na análise dessa esdrúxula transfiguração.

A obra dos constituintes da Carta de 1988, de fato, democratizou o País, com as ressalvas apontadas pelo jurista Mauricio Godinho Delgado em matéria da legislação sindical (Curso de Direito do Trabalho, LTR), embora tenha recepcionado – em razão da sua desconfiança quanto às instituições da democracia representativa em concretizar os ideais de igualdade que ela acolheu – a tradição brasileira, do Império à República, de confiar ao Poder Judiciário papéis de pedagogia cívica sobre a cidadania. Nesse sentido, o constituinte criou novas instituições, como o mandato de injunção, redesenhou o Ministério Público com uma configuração inédita no Direito Comparado que parece ter saído da prancheta de um Oliveira Vianna, constitucionalizou a Defensoria Pública, as ações civis públicas e os juizados especiais, entre outras inovações.

Tudo o que é vivo na sociedade foi recoberto por essa malha amplíssima, que não deixou de crescer com a legislação subsequente e com uma jurisprudência cada vez mais criativa dos tribunais, sempre citados em registro positivo os casos do reconhecimento das relações homoafetivas, o do aborto de fetos anencéfalos e a demarcação de terras indígenas no Estado de Roraima. A legislação eleitoral, fato da política, não passou imune à intervenção dos tribunais, que derrubou a cláusula de barreira, introduzida pelo legislador, para que os partidos viessem a ter acesso ao Parlamento, com resultados, como ora se constata, em tudo diversos, por sua carga negativa, dos casos acima citados, que encontraram soluções benfazejas.

As razões de fundo do crescimento exponencial da litigação nos tribunais, tão bem descrita em artigos deste jornal por José Renato Nalini, ex-presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, não encontram sua explicação apenas no comportamento de atores singulares, até porque litigar tem custos, ao menos de tempo, e os resultados são sempre incertos e, em regra geral, demorados. Elas, ao contrário, derivam da perda de credibilidade e da capacidade de atração dos partidos políticos, de uma vida associativa frágil e destituída de meios para negociar conflitos, não restando outro recurso a uma cidadania desamparada e fragmentada senão recorrer à Justiça. O atual gigantismo do Judiciário e a monumentalidade arrogante de suas sedes são a contraface, como consensualmente registra a bibliografia, da falta de República e de suas instituições.

Intuitivo que a judicialização da política vem trazendo consigo a politização do Judiciário, em particular dos seus órgãos superiores. Não se pode argumentar, como tão frequente, que nossas instituições são resilientes e estão funcionando – diante do quadro que aí está talvez nem o Doutor Pangloss ousasse uma platitude de gênero tão naïf. Há uma situação de alto risco em nossas instituições e no tecido da vida social. Estamos à beira de um precipício, já foi escrito em algum lugar. César Benjamin, analista respeitado, diagnosticou em debate recente a possibilidade de uma convulsão social, ainda remota, é certo, mas que não deve ser descartada, pelo clima de cólera que grassa por aí nas ruas, nos aeroportos e nos restaurantes grã-finos, com seus frequentadores endinheirados.

É preciso que, em alto e bom som, se diga que muito desta crise que ora nos atormenta talvez não se revestisse da dramaticidade atual se uma canetada do Supremo Tribunal Federal não tivesse passado por cima da vontade do legislador que criou a cláusula de barreira para os partidos políticos. Nesta hora em que convergem a judicialização da política e a da saúde e a intervenção do Judiciário em políticas públicas do governo do Estado do Rio de Janeiro, é de lembrar a ação republicana dos médicos David Capistrano da Costa Filho e Antonio Sergio Arouca, intelectuais públicos que pavimentaram o caminho, por dentro dos partidos efetivamente existentes, do Parlamento e fora deles, para a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), hoje à margem da República e dependente da discrição de ações judiciais para poder funcionar. A Roma dos pontífices da Renascença, Maquiavel que nos diga, jamais poderia ser uma República.

*LUIZ WERNECK VIANNA É SOCIÓLOGO, PUC-RIO / O ESTADO DE SP

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