A democracia em crise e seus partidos
Impossível predizer minimamente, no denso cone de sombra em que nos movemos, o futuro do sistema partidário, ainda e apesar de tudo elemento essencial de qualquer moderna democracia de massas que se preze. Partidos – diz a expressão famosa – são, ou devem ser, a democracia que se organiza e se afirma, elos decisivos, mas não exclusivos ou excludentes, de uma relação saudável entre sociedade civil e sociedade política.
Nunca tivemos tradições partidárias propriamente consolidadas, que encarnassem interesses e concepções de mundo relativamente estáveis e transmitidas de uma geração para outra. O peso do Estado na modernização brasileira não raro impossibilitou a emergência e a consolidação de partidos organizadores de opinião e formadores de quadros dirigentes. Basta lembrar que em 1964 se interrompeu bruscamente o sistema que bem ou mal se vinha constituindo nos marcos da Constituição de 1946. E, no ocaso do regime autoritário, Arena e MDB seriam dissolvidos ou mudariam de pele, dando origem ao pluripartidarismo afinal consagrado na Constituição de 1988.
Tradições interrompidas, vida política controlada “de cima” nos períodos autoritários recorrentes, tendência à fragmentação nos momentos de liberdade – tudo isso contribuiu para o caminho inóspito que teve entre nós a formação de partidos nacionais. E aqui se entende por partido nacional não só aquele que se espalha pelo território do País, ou por boa parte dele, como também, e talvez principalmente, aquele que ultrapassa a limitada fronteira de seus (legítimos) interesses próprios, procurando dar uma resposta minimamente coerente aos problemas do conjunto da sociedade. Sem esse movimento de autossuperação não há política, ou pelo menos não há grande política.
A explosão de partidos pós-1988 foi apenas um dos problemas deixados para trás ou ainda insuficientemente tratados. Não que se devesse impedir a livre criação de agremiações, mas certamente se devia obstar que as normas de acesso às formas de financiamento público, incluído o tempo na televisão, se tornassem tão frouxas que a proliferação de siglas virasse um capítulo bizarro do “empreendedorismo” nacional – muito útil na vida econômica, mas fator de desagregação na vida partidária e na parlamentar.
Os partidos com os genes de centro-direita, como o PP e o DEM, progressivamente entraram em declínio, com pouca capacidade programática e limitada inserção na sociedade, apesar de esforços do Democratas no sentido de estabelecer uma agenda econômica liberal. Reuniram-se aos partidos de vocação centrista ou de centro-esquerda, como o PMDB e o PSDB, na categoria de partidos basicamente parlamentares. É verdade que continuam a disputar com êxito eleições locais e empalmam milhares de prefeituras e governos estaduais, sem falar que ostentam milhões de filiados nos cartórios eleitorais, mas este último dado não significa enraizamento ou adesão consciente.
Em certos momentos, como o PMDB na saída da ditadura ou o PSDB na reforma liberalizante, representaram forças sociais vivas e propuseram programas de governo consistentes. Isso durou pouco e, a partir de 2002, na proposição de algum tipo de “projeto nacional” viram-se francamente ultrapassados pelo PT. Caso curioso, o deste último. Resultado de ampla mobilização – que se pense nas comunidades de base, no sindicalismo do ABC ou na adesão de parte significativa dos intelectuais –, quis credenciar-se como uma formação da nova esquerda e até em ruptura com a trajetória estatista e nacional-desenvolvimentista dos comunistas de 1950-1960. Uma pretensão, contudo, que feneceria antes do fim do primeiro mandato do presidente Lula e agora, aliás, se exacerba com o desarquivamento do queremismo para 2018.
Não se pode dizer que, ao afirmar-se como o mais sólido dos partidos, o PT tenha pensado no conjunto do sistema partidário, como seria de esperar de uma força madura. Hostil a alianças no período “heroico”, orgulhosamente isolado na hora de acumulação de forças, a elas se entregou sem nenhum pudor, atropelando requisitos legais, assim que se viu à frente do Executivo. Como resultado, parte considerável de seu grupo dirigente ainda há poucos anos terminaria ingloriamente condenada nos termos da Ação Penal 470, fato tremendo que, em condições normais, deveria desencadear profundo esforço de revisão de ideias e práticas.
À luz do que se seguiu e se prolongou até 2014, dificilmente se pode deixar de considerar aquele partido como fator de desestabilização dos demais, ao continuar a cooptar lideranças e a lotear pedaços do aparelho de Estado possivelmente “como nunca antes na História do País”. Um balanço melancólico, sem dúvida, ainda que se deva dizer que aperformance pateticamente convencional dos outros atores foi, ao longo do anos, um convite à investida que sofreram e a que se adaptaram de um modo ou de outro – ou, pior ainda, replicaram em tom menor nas realidades estaduais sob seu controle. Em síntese, os atores secundários não souberam reagir, organizando-se, e jamais estiveram à altura do desafio, contribuindo com seu anacronismo para o empobrecimento da democracia dos partidos a que hoje, atônitos, assistimos.
As sombras são espessas, a visibilidade é mínima. Tem de haver gente de todo o espectro, esquerda incluída, com um travo amargo na boca e disposta a reconstruir em novas bases seus partidos, suas lealdades e convicções. Admitamos sobriamente que uma possibilidade real, hoje, é a do surgimento de aventureiros a denunciar o jogo partidário como intrinsecamente corrupto e a buscar uma conexão direta e irracional com os eleitores. Esse seria o desvio para o inferno, que os democratas, sem exceção, estamos chamados a esconjurar, sob pena de revivermos, como diz o poeta, os mesmos tristes e velhos fatos que já deveriam estar recolhidos aos álbuns do passado.
Luiz Sérgio Henriques / *Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das 'obras' de Gramsci no Brasil. Site: www.gramsci.org / O ESTADO DE SP