Descriminalização do desacato
Num momento de grandes polêmicas e contradições, envolvendo o ordenamento jurídico nacional, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tomou uma decisão há muito cobrada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos: estabelecer que não é crime o ato de desacato. Dessa forma, adequa a legislação penal brasileira ao Pacto de São José, do qual o Brasil é signatário. Essa iniciativa chega no preciso momento em que ganha relevância no Brasil o debate sobre o abuso de autoridade.
O cidadão brasileiro certamente se sentirá aliviado por ver removido um dos principais fatores de constrangimento no seu relacionamento cotidiano com agentes do Estado, sejam policiais, sejam funcionários de qualquer um dos Poderes da República. Volta e meia, cidadãos são sancionados por suposto “crime de desacato à autoridade” pelo simples reparo a algum procedimento arbitrário de um agente público. Se for um policial, então, o perigo é redobrado, pois está sujeito a ser preso no ato e enquadrado no artigo 331 do Código Penal (crime de desacato). Isso não significa que o reclamante possa cometer crime de injúria e difamação contra o funcionário. Segundo a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, as leis de desacato atentam contra a liberdade de expressão e o direito à informação. Na verdade, vem sendo entendido por certos funcionários, como um escudo para praticarem arbitrariedades e abuso de autoridade.
Um caso emblemático foi o da servidora do Detran-RJ que, durante uma blitz, autuou um juiz de direito que não portava a carteira de habilitação e dirigia um veículo sem placa. O magistrado deu-lhe voz de prisão e ela reclamou que ele “não era Deus”. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro condenou a servidora a pagar R$ 5 mil por danos morais ao juiz. A justificativa veio no acórdão: “Dessa maneira, em defesa da própria função pública que desempenha, nada mais restou ao magistrado, a não ser determinar a prisão da recorrente, que desafiou a própria magistratura e tudo o que ela representa”.
Portanto, a decisão do STJ acaba com uma excrescência, justamente no momento em que o Congresso Nacional regulamenta a punição do abuso de autoridade, para que nenhum segmento se coloque acima do controle exercido pela democracia sobre qualquer autoridade pública.
Nenhuma categoria de funcionário público deve considerar-se “mais igual” do que os demais, no Estado Democrático de Direito. opovo