A lógica da indecência
o estadão de sp
O presidente do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, admitiu a magistrados que manobra pela aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) – aprovada pelo Senado e em trâmite na Câmara – que concede a juízes, promotores e ministros dos tribunais de contas um adicional de 5% no salário a cada cinco anos. Segundo ele, esse quinquênio valorizará a parte intermediária da magistratura, mas “sem os abusos” do topo de carreira. Isso porque a PEC prevê que o bônus será limitado a 35% do teto constitucional. De fato, os juízes no topo já não receberão aumentos, mas nem precisam, porque, na prática, o teto salarial terá sido abolido. A ideia de que o quinquênio valorizará juízes, “mas sem abusos”, é uma impossibilidade lógica. O quinquênio é, em essência, abusivo, em múltiplos aspectos: moral, administrativo e fiscal.
Suponhamos que se pretendesse conceder o benefício a todos os servidores. Isso já seria um abuso. Em média, os servidores já ganham acima de seus pares na iniciativa privada, sem contar benefícios como estabilidade e previdência diferenciada. Por que deveriam receber adicionais automáticos por tempo de serviço, uma prática que não se aplica em nenhuma carreira, por razões óbvias: aumentos são prêmios ao desempenho de cada profissional? Um acréscimo vegetativo e indiscriminado, ao contrário, é um incentivo à ineficiência. Assim, o quinquênio penaliza os cidadãos não só com mais gastos e desigualdade, mas com piores serviços.
Esse hipotético quinquênio generalizado seria ao menos um arremedo de respeito à isonomia. Não é o caso. A PEC é só para juízes e promotores, a elite do funcionalismo, que já goza dos maiores salários e todos os privilégios imagináveis. A desigualdade entre as carreiras do topo e da base do setor público chega a ser sete vezes maior que no privado. Com o quinquênio, aumentará muito mais.
O Judiciário brasileiro já é um dos mais caros do mundo, custando 1,6% do PIB ao ano, enquanto a média dos países ricos é de 0,3%. Segundo Gabriela Lotta, da FGV, metade dos 11 milhões de servidores brasileiros recebe menos de R$ 3,4 mil por mês. O 1% do topo ganha de R$ 27 mil para cima. O quinquênio beneficiará os 38 mil servidores no pico desta pirâmide, a um custo anual de R$ 42 bilhões. Isso representa metade do déficit primário para este ano. O SUS custa cerca de R$ 140 bilhões, e o Bolsa Família, para 21 milhões de famílias, sai por R$ 160 bilhões.
Barroso reclama que os juízes se sentem desestimulados no meio do caminho, porque a remuneração no fim é muito próxima à do início. Mas isso porque os salários iniciais já são incomparavelmente superiores aos de qualquer outra carreira, pública ou privada. De resto, não há notícia de evasão de juízes – como há em outras carreiras que recebem mal, para que as elites recebam bem. Os juízes costumam comparar seus salários aos de sócios de grandes bancas advocatícias, mas – sem falar que estes profissionais estão expostos aos riscos do mercado – a remuneração média de um advogado é de cerca de R$ 5 mil, dez vezes menos que a média de um juiz. Pergunte aos batalhões de concurseiros se a carreira é “pouco atrativa”.
Quem expôs sem meias palavras as motivações do lobby pela PEC foi o presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, Torres Garcia, ao Globo: “Não podemos comparar salário de magistrado com salário de trabalhador desqualificado”. Como médicos e professores ganham substancialmente menos que juízes, presume-se, pela lógica do sr. Garcia, que são todos desqualificados. E o sr. Garcia ainda sugere que um magistrado deve ganhar mais porque “o magistrado mal remunerado poderá estar sujeito à corrupção”. Ou seja, a honestidade dos juízes aparentemente tem um preço, que a sociedade está sendo chantageada a pagar. Eis por que é preciso “valorizar o tempo da magistratura” ao custo da desvalorização do salário dos “desqualificados” – aos quais, pela lógica do sr. Garcia, resta sempre a opção de se corromper.
Se o sr. Garcia ganha um ponto pela franqueza, o argumento do sr. Barroso em favor do aumento para evitar os “abusos” do topo da carreira mostra que a lógica já foi mais prestigiada na magistratura. A decência também.