O Comando de caça aos ‘traidores’
O ESTADÃO DE SP
Catástrofes despertam o melhor e o pior das pessoas. Ante a tragédia do Rio Grande do Sul, o Brasil testemunha gestos de abnegação, caridade e heroísmo de indivíduos, solidariedade de empresas e organizações civis e cooperação de instituições públicas. Mas o pânico também desperta confusão e paranoia. Para as pessoas atingidas diretamente pela calamidade, a situação ou a percepção de uma ameaça existencial pode ser uma atenuante para erros ou mesmo um excludente de ilicitude. Para os que estão a distância, aproveitar-se da comoção para auferir ganhos pessoais é um agravante moral e eventualmente penal.
A pretexto de combater a desinformação e o oportunismo, o ministro da Secretaria de Comunicação da Presidência, Paulo Pimenta, disseminou ele mesmo desinformação para tirar proveitos políticos. Durante a reunião da Sala de Situação criada pelo governo, Pimenta denunciou furiosamente “uma indústria de fake news alimentada por parlamentares e influencers” para atrapalhar os esforços do governo. “Estamos numa guerra”, disse, e quem age “contra nós” é como uma “quinta coluna”: “traidores” que devem ser tratados como “criminosos”. Ele prometeu acionar a Polícia Federal para punir autores de “desinformação” e “mentiras”.
Não há o tipo penal de “fake news” ou “desinformação”. Opiniões repulsivas ou errôneas, e mesmo mentiras, não são crimes. O que há, sim, é o uso da mentira para cometer crimes, por exemplo, contra a honra, como calúnia ou difamação, ou ilícitos patrimoniais, como estelionato.
No caso, há muitas denúncias de perfis fraudulentos utilizados para captar doações. São crimes que devem ser devidamente reprimidos. De resto, há uma profusão de informações desencontradas e falsas, por exemplo, sobre a tributação das doações ou a fiscalização de veículos utilizados para o socorro. É o tipo de desinformação danosa, não necessariamente dolosa, que deve ser combatida com mais informação. O governo gaúcho criou uma força-tarefa para rastrear esse tipo de falsidade e esclarecer a população.
O ânimo punitivista de Pimenta é de outra natureza. Em ofício encaminhado ao Ministério da Justiça, o ministro listou postagens em redes sociais que, segundo ele, são “narrativas desinformativas e criminosas”. Com base em uma delas, acusa, por exemplo, que “Eduardo Bolsonaro criticou a ajuda do governo federal ao Rio Grande do Sul, ao mencionar que o governo levou quatro dias para enviar reforços”. Eis o “crime”: criticar o governo petista. Um interlocutor na Sala de Situação sugeriu: “Mandar prendê-los?”. E Pimenta responde: “Manda prender, não aguento mais ‘fake news’”.
Se o ministro mistura assim alhos com bugalhos, não é por ignorância, mas por cálculo. É a “guerra” contra quem age “contra nós” e deve ser tratado como “traidor”. Jornalistas presentes na reunião ouviram de viva voz os desejos inconfessáveis do ministro: “Botar para f... com os caras”.
Nada disso promove a solidariedade e a justiça, só mais cizânia e justiçamentos. Se Pimenta quer castigar oportunistas que disseminam desinformação para ganhos políticos, deveria começar por si mesmo.