Rogério Furquim Werneck / O GLOBO
Não faltará quem alegue, como Billy Wilder, que “visão retrospectiva é sempre perfeita” (Hindsight is always twenty/twenty). Mas a verdade é que só não viu quem não quis. Já no final do ano passado, saltava aos olhos o alto risco de uma baderna como a que redundou em invasão e depredação das sedes dos Três Poderes, em 8 de janeiro, em Brasília. É espantoso que o novo governo não tenha se preparado para impedir que um distúrbio dessa gravidade acabasse ocorrendo.
Já em 12 de dezembro, data da diplomação de Lula no Tribunal Superior Eleitoral, ficara claro que o desempenho das forças de segurança responsáveis pela manutenção da ordem na capital federal se mostrara completamente inadequado, para lidar com a arruaça que então se viu.
Some-se a isso a absurda complacência com que as Forças Armadas insistiram em dar guarida — em áreas de segurança nacional, adjacentes a instalações militares — a acampamentos de militantes de movimentos que contestavam o desfecho da eleição presidencial.
Houve, é bem verdade, a “posse informal” precoce do novo ministro da Justiça para lidar com as dificuldades que se desenhavam. Mas muito mais teria de ter sido feito. Era óbvio que o esquema de segurança mantido pelo governo do Distrito Federal não era confiável. E menos confiável ainda se tornaria quando se anunciou que o secretário de Segurança do segundo mandato do governador Ibaneis Rocha seria ninguém menos que o então ministro da Justiça de Bolsonaro.
O novo governo teria de ter articulado esquema alternativo, dando prioridade à reestruturação, com a urgência cabível, do Gabinete de Segurança Institucional, responsável pela proteção da Presidência. E, caso necessário, teria de estar pronto para uma mobilização efetiva das unidades militares que têm como missão precípua atuar como guarda presidencial. Nem Lula nem o PT são propriamente neófitos. Era a quinta vez, em 20 anos, que um governo petista tomava posse em Brasília.
Quando se noticiou que uma centena de ônibus vinha desembarcando novos manifestantes em Brasília, a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) entendeu que era o momento de alertar para o risco de violência.
Ao mesmo tempo, a Polícia Federal deflagrou alerta para alto risco de depredações na Praça dos Três Poderes. Mas tais advertências caíram no vazio. O governo permaneceu inerte. O apagão se instalara.
À medida que se alonga a interminável lista de omissões, negligências, inações e erros envolvidos, o próprio governo vem se dando conta das reais proporções da falha colossal em que se permitiu incorrer ao não se mobilizar com a eficácia requerida para impedir o tumulto que afinal se viu.
Há, contudo, quem prefira vislumbrar um copo meio cheio e se esforce para enxergar, nas cenas chocantes de depredação da Praça dos Três Poderes, um fator de fortalecimento do novo governo e de consolidação do compromisso das forças políticas do país com a democracia.
Embora seja inegável que, num primeiro momento, isso tenha de fato ocorrido, não há como subestimar quão desastrosos ainda prometem ser os desdobramentos de tamanha barbárie.
O 8 de Janeiro representou brutal retrocesso político. E deflagrou inoportuna exacerbação das piores contradições com que hoje o país se debate, ao prenunciar dificuldades redobradas no avanço do desarmamento de espíritos e da pacificação política.
Para o novo governo, a baderna trouxe um envenenamento ainda mais grave da relação do Planalto com os militares, que Bolsonaro já deixara como deplorável legado. Mas trouxe, especialmente, desrespeito, insegurança e estreitamento de possibilidades.
Deixou Lula abalado, mais avesso ao risco, de olhos vidrados nos índices de popularidade, aferrado a um discurso muito mais populista e ainda menos propenso a contrariar interesses e fazer escolhas que se impõem.