A POLITICA DO CADA UM POR SI - NO BRASIL
Por Notas & Informações / O ESTADÃO
As emendas de relator expõem vários aspectos disfuncionais do governo de Jair Bolsonaro e de suas relações com o Congresso. Por óbvio, elas serviram para construir uma base de apoio parlamentar e livrar o presidente de processos de impeachment. Se o teto de gastos teve efeito nulo sobre o controle das despesas obrigatórias no Orçamento, ele certamente limitou o avanço dos gastos discricionários, elevando a disputa por recursos entre o Executivo, por meio dos ministérios, e o Legislativo, com as famosas emendas.
O fato de a indicação das emendas de relator estar nas mãos dos presidentes da Câmara e do Senado denota a falta de transparência do esquema. A opacidade sobre a verdadeira autoria sugere a existência de uma política de dois pesos e duas medidas, na qual o voto de alguns é mais valioso que o de outros, o que certamente geraria uma rebelião no Congresso caso os critérios de precificação viessem a público.
Há outra característica que as emendas de relator revelam sobre o governo Bolsonaro. Ainda que não sejam a causa, elas colaboraram para destruir políticas públicas que vinham sendo executadas há anos e que davam um senso de coletividade a um país hoje tão dividido. No passado, era comum que as emendas estivessem vinculadas a prioridades definidas previamente pelos ministérios setoriais. Os parlamentares mais fiéis ganhavam primazia para suas indicações e direcionavam recursos reservados para políticas públicas de alcance nacional às suas bases, enquanto os de oposição arcavam com o custo de se contrapor ao Executivo e viam seus pedidos relegados ao fim da fila.
Embora não estivesse livre de falhas e fisiologismo, esta era uma das formas de construir uma governabilidade real, algo que se tornou desafiador quando o Congresso deu caráter obrigatório às emendas individuais, em 2015. Neste ano, por exemplo, cada deputado e senador pôde indicar a destinação de R$ 17,6 milhões por meio de emendas individuais, totalizando R$ 9 bilhões. É inegável que isso alterou a dinâmica dos poderes. O incentivo para integrar a base aliada deixa de existir quando todos são tratados da mesma forma.
É daí que surgem as emendas de relator, que neste ano atingiram R$ 16,5 bilhões. O mecanismo funciona precisamente por não ter execução obrigatória, reforçando o comportamento dos mais fiéis, o que em tese não teria nada de errado se houvesse transparência sobre sua autoria. O problema está naquilo que elas têm financiado: ações sem qualquer vinculação com as políticas públicas prioritárias do País. E essa responsabilidade é do Executivo, que deliberadamente se omitiu ao delegar todas as decisões sobre as emendas ao comando do Legislativo.
As implicações desse modus operandi começam a vir à tona. O cenário das políticas públicas é de terra arrasada. Nem ações como a Política Nacional de Imunizações (PNI), o Farmácia Popular, a compra de livros didáticos e a complementação de verbas para a merenda escolar foram poupadas, entre muitos outros casos que atingem a coletividade, sobretudo famílias mais vulneráveis, nem sempre de forma imediata.
Diante de uma desarticulação de dimensões amplas e generalizadas, os parlamentares sabem que, individualmente, não têm condições de fazer diferença no restabelecimento dessas ações, que dependem da coletividade do Legislativo, mas, primordialmente, da iniciativa e da liderança do Executivo. Assim, deputados e senadores em busca de reeleição agem na política do cada um por si: direcionam recursos para suas bases para financiar aquilo que aparece – asfalto, tratores ou caminhões de lixo – em detrimento do que deveria ser prioridade.
É preciso reconhecer, no entanto, que as emendas de relator não são causa do caos ao qual o País se viu submetido nos últimos anos. São, na verdade, consequência do desgoverno que foi a gestão de Bolsonaro. Deixar diversas políticas públicas à beira da inanição, de alguma forma, expressa as convicções de um parlamentar que só defendeu a si mesmo em toda a sua vida pública. Não seria diferente como presidente.