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Com mais famílias na rua, número de moradias improvisadas em SP cresceu 230% em dois anos

Por Aline Ribeiro — São Paulo O GLOBO

 

 

 

 

Numa manhã chuvosa, um homem varria uma calçada do Centro de São Paulo como se limpasse a porta de casa. Na mesma via pública, conhecidos dele dividiam um sofá encardido enquanto batiam papo e bebiam tragos de cachaça. No fogão feito de tijolos, lata de refrigerante e álcool, um integrante do grupo cozinhava uma sopa de macarrão e frango e se preparava para fritar uns “zóio estalado”. Quando a equipe do GLOBO se aproximou, o dono da moradia improvisada, com espaços simulando sala, quarto e cozinha, fez o convite:

— Vem conhecer meu castelo de madeira — disse Eliel Sales da Conceição, de 39 anos, que mora na rua há pouco mais de dois. — É aqui que durmo com a minha neguinha. Faço um bico aqui, outro ali, para sair dessa condição.

Durante a pandemia de Covid-19, a paisagem urbana da capital paulista foi tomada por barracas de camping e de madeira, papelão e lona. Elas abrigam uma população em situação de rua que igualmente explodiu. As tendas forjam o lar onde até pouco tempo essas pessoas moravam. Segundo o último Censo da População em Situação de Rua, encomendado pela Prefeitura de SP e divulgado em janeiro, em dois anos a capital paulista registrou aumento de 230% dessas moradias improvisadas instaladas em vias públicas. Em 2019, eram 2.051 pontos do tipo. Em 2021, 6.778.

— A barraca é um fenômeno intimamente ligado à pandemia. Está relacionado ao maior número de pessoas com menos tempo na rua — afirma Carlos Bezerra, secretário municipal de Assistência e Desenvolvimento Social de São Paulo. — Elas usam a barraca para se proteger das intempéries, da violência e violação de direitos, e para preservar o núcleo familiar. A barraca remete a esses elementos simbólicos todos.

Na de Eliel, rosas vermelhas de plástico e uma bandeira do Palmeiras decoram a parte externa. Dentro, há uma cama box de casal sem colchão, coberta com pedaços de espumas, um pequeno armário com itens de higiene pessoal, um carrinho de supermercado e um varal que faz as vezes de guarda-roupa. Eliel divide o espaço com a companheira Silvia Conceição, de 48 anos, e uma cadela e seus cinco filhotes. Para lavar louça e escovar dentes, o casal armazena água em baldes, coletada da torneira de um prédio abandonado. O banho é tomado diariamente em banheiros públicos.

O censo mostrou que, entre 2019 e 2021, saltou de 24.344 para 31.884 o número de pessoas em situação de rua na capital paulista, um aumento de 31%. Na pandemia, também houve uma mudança de perfil dos sem-teto. Se antes era mais comum se deparar pelas calçadas com homens solteiros, em geral usuários de álcool e drogas, hoje não é raro ver famílias, muitas despejadas de suas casas pela crise econômica. Segundo o censo, quase dobrou a quantidade de famílias que foram para as ruas neste período: de 4.868, em 2019, para 8.927 pessoas, em 2021.

Nabil Bonduki, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, explica que, historicamente, o centro do problema da população em situação de rua não era habitacional. Isso porque, diz, o caminho que levava uma pessoa a ficar sem lar passava essencialmente por conflitos familiares, abandono, uso excessivo de álcool e drogas. Diante do novo perfil dessa população, de famílias que perderam empregos e renda e foram parar nas ruas, a moradia passou a ser a questão determinante.

 

— Muita gente ficou sem condição nenhuma. Até recebeu a renda emergencial, que era importante, mas que não dava para pagar aluguel e comer — pondera Bonduki. — É muito mais fácil ter uma ação social voltada para esse perfil do que para o tradicional. Nesse caso, é uma questão de política de habitação.

Sem emprego e somente com R$ 400 mensais do Auxílio Brasil, as irmãs Evelin e Rafaela Conceição da Silva, 19 e 22 anos, estão há cinco meses na rua. Vindas de Salvador, na Bahia, elas chegaram a SP a convite da tia, em busca de trabalho e uma vida melhor. Evelin trouxe o filho Breno, de um ano. Rafaela veio acompanhada da filha Rebeca, de dois, e do marido Luiz Henrique de Jesus, de 28 anos. Ao chegarem aqui, se desentenderam com a tia, na casa de quem moravam de favor. Em suas palavras, ela estava “malucada”.

Numa tarde de abril, eles haviam montado suas barracas recém-doadas numa rua do Centro. Mas a água acumulada na sarjeta, onde proliferavam larvas e mosquitos, fez com que buscassem outro ponto. É a primeira vez que a família vive na rua. Antes, as meninas faziam bicos na capital baiana e Jesus era entregador de água. Sobre a rua, eles reclamam de ter de deixar as crianças no mesmo ambiente de usuários de crack. Das ratazanas que cercam a barraca. Do frio e da chuva. Da falta de rotina, tão essencial para bebês e crianças. (Os horários de comer, dormir, acordar e tomar banho são definidos pela chegada das doações).

— A gente não toma café da manhã e só almoça lá por quatro da tarde, quando os irmãos chegam com marmita ou quando conseguimos pegar a senha do padre (de distribuição de comidas). Se a gente perde, só vamos comer à noite — conta Rafaela.

De acordo com o censo, a maioria da população em situação de rua é de fora da cidade de SP (60,8%) e está há menos de dois anos (42%) sem um lar. É o caso de Rosângela Mariano, de 42 anos, oriunda de Campinas. Após terminar um relacionamento, há cinco meses ela pegou um ônibus para a capital acompanhada do filho Gabriel, de 8 anos, autista. Tinham como destino Brasília, onde havia para ela uma promessa de emprego, mas foram roubados na rodoviária e acabaram na rua.

Até aquela tarde de abril, ela e o filho dormiram debaixo de uma marquise na Praça da Sé. No dia em que Rosângela conversou com o GLOBO, havia acabado de comprar uma barraca por R$ 150, com o dinheiro do auxílio do governo. Ainda ajeitava seus objetos pessoais, roupas e brinquedos do filho, para deixar “tudo arrumadinho”. Tirando o cheiro do crack, Rosângela pouco reclama da vida na rua. Diz que as marmitas doadas são boas e que a polícia os protege.

— Vivo melhor aqui do que com meu ex-companheiro — defende Rosângela. — Mas é claro que quero sair, arrumar um emprego e tentar dar o melhor para o meu filho, uma casa, estudo. Meu sonho é que ele vá para a escola e tenha o que eu não tive— diz.

Apesar do impacto da pandemia e da crise econômica na mudança do perfil dessa população, o conflito familiar (34,7%) ainda é a razão que mais leva as pessoas às ruas de São Paulo, seguido da dependência de álcool e outras drogas (29,5%) e da perda de trabalho e renda (28,4%), detalhou o censo. Foi uma desavença com os parentes que levou Rosana Bueno, de 44 anos, a deixar sua casa. Na época, ela trabalhava como cozinheira e, ao sair do restaurante diariamente a caminho de casa, passava por moradores de rua que viviam no entorno. Acabou se relacionando com um, e a família não aceitou.

Há três anos, Rosana mora numa barraca perto da Avenida Paulista. Passou um tempo cuidando do pai no interior, mas voltou há cerca de dois meses. Ao lado dela, há outra tenda de camping, igualmente doada, ocupada pelos amigos Aparecido Souza, de 54 anos, e Sebastião Fagundes, de 64. Ex-usuários de álcool e drogas, respectivamente, os dois homens se conheceram anos atrás numa clínica de reabilitação. Depois de saírem, casaram-se com duas mulheres, se separaram, arrumaram trabalho, dividiram casa e, mais recentemente, a barraca.

Hoje vizinhos de Rosana, os dois compartilham com ela uma área comum — varal para pendurar roupas, um fogão e baldes com água, cadeiras que funcionam como sofá. Lavam a calçada com água sanitária, colocam ratoeira e repelentes contra mosquitos. O complexo ganhou recentemente energia elétrica, puxada da fiação do parque. Além do auxílio, conseguem dinheiro vendendo cigarro e corote para usuários de drogas que vivem sob um viaduto. No fim da tarde, recolhem-se nas barracas.

— Na rua, me reencontrei e pude ser eu mesma, sem me preocupar com que meus pais, meu ex-marido, meus filhos iriam pensar. Hoje essa é minha família — diz Rosana.

 

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