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Natural ou vazado de um laboratório: entenda a polêmica científica sobre a origem da Covid-19

Ana Lucia Azevedo / o globo

 

RIO - Sem alarde, pesquisadores do Instituto de Virologia de Wuhan anunciaram a descoberta na semana passada de um novo ramo na árvore evolutiva dos coronavírus de morcegos. Todos são parentes distantes do Sars-CoV-2. Mas, como disseram os próprios chineses, sua identificação é só “a ponta do iceberg” do universo de coronavírus desconhecidos com potencial de causar doença.

O anúncio ocorre num momento em que a China e seus cientistas, em especial os de Wuhan, são acusados de ocultar dados sobre a origem da pandemia. Wuhan é a cidade chinesa onde foram registrados oficialmente os primeiros casos da Covid-19, em dezembro de 2019. 

Uma enfermeira com traje de proteção cuida de um bebê com COVID-19, causado pelo coronavírus, em uma enfermaria de isolamento do Hospital Infantil de Wuhan em Wuhan, província de Hubei, China em 16 de março de 2020. Foto tirada em 16 de março de 2020. Foto: China Daily / via Reuters
Uma enfermeira com traje de proteção cuida de um bebê com COVID-19, causado pelo coronavírus, em uma enfermaria de isolamento do Hospital Infantil de Wuhan em Wuhan, província de Hubei, China em 16 de março de 2020. Foto tirada em 16 de março de 2020. Foto: China Daily / via Reuters

Um suposto relatório secreto americano divulgado pela mídia dos EUA traria indícios, sem apresentar provas, de que o Sars-CoV-2 poderia ter escapado do laboratório de Wuhan. Na quarta-feira, o presidente Joe Biden ordenou mais investigações sobre o caso, trazendo para a esfera política a questão científica. Vale lembrar que uma investigação da Organização Mundial da Saúde (OMS) terminou em março sem conclusões relevantes. Por isso, um grupo de cientistas pediu em carta na revista Science mais acesso aos laboratórios da China.

A polêmica tem como pano de fundo as disputas entre os EUA e a China, mas pode ter consequências, algumas delas nefastas, sobre o combate da pandemia.

Os vírus apresentados semana passada, de oito tipos ao todo, foram coletados em 2015, nas mesmas cavernas da província de Yunnan, no Sul do país, onde se supõe que tenha surgido o ancestral do Sars-CoV-2.  Os chineses não esclareceram porque só resolveram apresentar seus achados agora. Mas a decisão foi vista como uma resposta à falta de transparência.

No estudo ainda sem revisão por pares e publicado apenas no repositório de dados bioRvix, os cientistas de Wuhan dizem que coletaram cerca de 1.000 amostras de morcegos de uma caverna usada para a mineração, durante três anos. A caverna foi investigada depois que mineiros começaram a adoecer de uma doença misteriosa. Testes posteriores mostraram não se tratar do Sars-CoV-2 e sua doença, a Covid-19.

Porém, nove coronavírus foram identificados, todos da mesma categoria já associada a síndromes respiratórias agudas graves. Um deles foi chamado de RaTG13 e descrito na Nature, em fevereiro. Trata-se do parente mais próximo do Sars-CoV-2 já encontrado. Os outros oito foram descritos agora e não são tão aparentados assim, embora tenham regiões em seu genoma assemelhadas.

O anúncio só veio alimentar a certeza de que as investigações sobre a origem da pandemia estão longe de terminar. 

O que diz o relatório da OMS? 

A principal conclusão dessa fase de investigação, a primeira, é que a hipótese de que o Sars-CoV-2 se espalhou de animais para seres humanos é muito mais provável do que a de que tenha escapado de um laboratório. Porém, o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, observou que as investigações continuam.

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Por que a hipótese de transbordamento de animais para seres humanos é considerada a mais provável? 

Porque transbordamentos (spillover, no termo em inglês) são conhecidos. Cada surto de ebola é um evento de transbordamento. O ebola não se mantém em homens. Ele pula de animais para seres humanos. Os casos de raiva recém-registrados são transbordamentos de vírus da raiva de morcegos para seres humanos e cães. Cerca de 75% das doenças emergentes são zoonoses, isto é, têm origem animal. É comprovado que desde o início dos anos 2000 os coronaviírus já passaram para seres humanos várias vezes. O Sars-1 chegou ao ser humano via consumo de carne de civeta infectada por coronavírus de morcegos. Já o Mers se transmite ao homem de camelos, originalmente contaminados por vírus originário de morcego. E há mais descobertas recentes.

Quais? 

Em março, foi apresentado estudo sobre três crianças do Haiti infectadas por coronavírus de porcos em 2014 e 2015. E na semana passada a revista Clinical Infectious Diseases trouxe a descrição da emergência de um coronavírus novo, com genes de coronavírus de cães, gatos e porcos. Ele foi achado em amostras de oito crianças da Malásia internadas com pneumonia em 2017. Porém, não se sabe se esse coronavírus foi a causa da pneumonia. Também já foram encontrados coronavírus semelhantes ao Sars-CoV-2 em morcegos da Tailândia.

E o que essas descobertas sugerem? 

Que coronavírus de animais podem passar para as pessoas muito mais frequentemente do que se imaginava. Na verdade, desde 2005 se detecta vírus parecidos de morcegos nas cavernas do sul da China e pessoas soropositivas. O transbordamento ocorre numa frequência muito maior do que o que se vê. 

Quando se poderá encontrar vírus ancestrais do Sars-CoV-2 ou animais que tenham servido de hospedeiros? 

Isso pode levar décadas sem que qualquer resultado conclusivo seja alcançado. Trata-se de examinar milhares de espécies de animais em busca de vírus que não se conhece. Vírus são as menores criaturas conhecidas. Para se ter ideia, uma dose de vacina pode conter 100 bilhões de vírus. 

Como se mostra que um vírus tem potencial de transbordamento (spillover)? 

A virologista da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Clarissa Damaso explica que é preciso clonar a proteína spike (usada para a invadir células) de um coronavírus e colocar num outro vírus vetor (lentivírus ou VSV) e demonstrar que a spike desse coronavírus é capaz de direcionar o lentivírus ou VSV para entrar em células humanas. É assim que se verifica o potencial zoonótico desses e de outros vírus.

E isso não traz risco de escape? 

Isso é necessário para investigar doenças letais e pode ser feito em segurança. Numerosos institutos de pesquisa fazem estudos assim. 

Por que a hipótese do laboratório persiste? 

Porque não foi determinada ainda a origem exata do vírus causador da Covid-19. Além disso, existe a coincidência de a pandemia ter supostamente começado em Wuhan e lá existir um laboratório que faz experiências com coronavírus. Mas Wuhan é uma das cidades mais movimentadas da China e seu laboratório é amplamente reconhecido. 

E sobre a origem animal? 

Existem uma série de evidências, mas nunca se achou um animal que fosse a ponte entre o coronavírus de morcego original e o homem. O Sars-CoV-2 tem muitas características genéticas que indicam que veio de um vírus de morcego. Mas ele é um vírus humano. Para chegar à forma que gerou a pandemia, teve que ter passado por mutações. E estas muito provavelmente foram adquiridas ao infectar um hospedeiro intermediário. Mas não se conhece até agora nem o suposto vírus de morcego ancestral nem uma forma intermediária. 

O que se sabe de concreto? 

Que o vírus não foi criado em laboratório, e isso se sabe por causa de estudos genéticos que descartaram qualquer tipo de manipulação gênica.

E a hipótese de escape? 

Ela é considerada possível porque acidentes desse tipo já ocorreram antes. Inclusive com o Sars-CoV-1 ao ser manipulado em laboratório em 2003 e 2004. Mas ele não surgiu lá e sim escapou quando já era conhecido e a epidemia de Sars-1 já estava inclusive controlada. Foram casos isolados de pessoas que se contaminaram dessa forma e não se propagaram para a comunidade.  

E existem provas de escape? 

Não. Existiriam três supostos casos de funcionário do laboratório de Wuhan que teriam ficado doentes em novembro de 2019, mas nenhuma prova de que fato adoeceram ou que doenças tiveram. A China nega a informação, que teria sido passada aos EUA por um terceiro país não identificado. Para analisar o caso mais a fundo, são necessários dados do laboratório. Mas estes não teriam sido entregues. Cientistas como o virologista Ian Lipkin, da Universidade de Columbia e que esteve nos laboratórios chineses, se disse preocupado com o que viu. Ao New York Times, afirmou que não ficou satisfeito com a segurança dos laboratórios nem com as respostas dos chineses. A falta de transparência dos chineses é um dos maiores motivos de desconfiança de cientistas, principalmente os americanos.

A quem interessa a teoria de que o vírus escapou do laboratório de Wuhan? 

Interessa a quem não quer controle sobre o desmatamento, sobre o tráfico de animais, sobre a caça. Até agora a discussão tem produzido de concreto teorias da conspiração, que podem prejudicar o combate à pandemia e a prevenção de outras. 

Por que interessa investigar a origem do coronavírus Sars-CoV-2? 

Porque vai gerar conhecimento sobre como evitar novas pandemias, controlar coronavírus e outros patógenos potencialmente perigosos. Decifrar a origem do vírus ensinará à ciência como eles se modificam para causar doença em seres humanos. Essas informações poderão salvar milhões de vidas. 

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